Ó mal hostil! Quanto do teu rastro são lágrimas no Brasil!
Por te menosprezarem, quantas mães se foram, quantos filhos em vão oram! Quantas vidas ficaram pelo caminho para dar razão ao Mau, ó mal!
Valeu a pena? Tudo valeria a pena Se a alma dele não fosse pequena. Quem quer passar além deste Horror Tem que passar além da dor. Ele à gente o perigo e o abismo deu: foi ele que espalhou o caos.
A morte de brasileiros, às centenas de milhares, atende a um cálculo político e a outro orçamentário.
Ao longo de não mais do que duas semanas:
i) O Presidente da República, o Governador do Estado do Amazonas e o Prefeito de Manaus deram causa a que alas inteiras de hospitais sob sua responsabilidade fossem palco da morte por asfixia de pacientes de COVID-19 pela falta de oxigênio. As pessoas estavam internadas, sendo cuidadas dentro de hospitais e morreram porque acabou o oxigênio.
ii) Um assessor do ministério da Saúde observou que não há por que abrir leitos de UTI, se não há oxigênio para o Norte. Então, que morram nas ruas.
iii) Há dúvidas quanto à veracidade da afirmação de uma autoridade, ventilada nos jornais, de que a morte de idosos beneficia o equilíbrio das contas do governo, por baixar o volume de aposentadorias a serem pagas. Pode não ser verdade, e espera-se que não o seja, porém a lógica é conhecida desde que veio a público a obra de Malthus, no século 19: o crescimento da população é mais intenso do que o dos recursos para sustentá-la, e qualquer progresso para a grande massa é uma ilusão passageira, porque os recursos logo se esgotam. É um dos mais complexos temas da Política, que este Governo demonstra ter resolvido por simplesmente dizer que não é com ele. Não se importa que morramos às centenas de milhares.
Não há relação de causa e efeito entre mortes por COVID nos últimos 11 meses e a oferta atual de alegados R$ 3 bilhões de reais em emendas a senadores e deputados apoiadores da candidatura governista à Presidência da Câmara dos Deputados. Porém, não deixa de ser uma coincidência extraordinária o que dizem alguns números a respeito de duas tristes grandezas: i) quantos de nós morremos e ii) quanto receberiam os que morreram, se vivessem por mais um ano – mais um ano fiscal, para ser preciso. Se estabelecermos, numa conta bem inferior à real, o valor do salário-mínimo (R$ 1.100, a partir deste janeiro) como base para o que, digamos de novo, 220 mil desses brasileiros mortos receberiam ao longo de 2021 como aposentadoria ou qualquer outro benefício governamental, chegaríamos ao valor anual (R$ 1.100 X 13 x 220.000) de R$ 3,14 bilhões de economia, por baixo, divididos entre o Orçamento Federal e o da Previdência Social. 3,14 é mesmo um número mágico.
Pois bem, o Presidente da República afirmou, semanas atrás, que o Brasil estava quebrado, não tinha dinheiro, não havia o que fazer para salvar a população da morte e da fome. Mas em seguida surgem R$ 3,14 bilhões de reais para construir apoio político no Congresso Nacional. Alguma conta fizeram. Talvez essa conta acima, macabra e conveniente.
Vamos fazer outras contas:
*Em 11 meses – de março a janeiro de 2021 -, morreram, repito, 220.000 pessoas de complicações causadas pelo COVID-19 no Brasil.
*Em média, portanto, morreram 666,666 (sim, não é brincadeira, a conta é essa…) pessoas por dia, todo dia, nesses 11 meses.
*De 1942 a 1945, morreram 1.300.000 pessoas em Auschwitz-Birkenau, o maior campo de extermínio nazista. Morreram esse tanto, lá e então, por asfixia, quase todos, mas também de bala, fome e experimentos médicos – experimentos de todo tipo, mas não há registro, é verdade, de terem oferecido cloroquina para curar uma síndrome respiratória grave.
*A média de mortes diárias em Auschwitz II – Birkenau naqueles três anos foi, grosso modo, de 1.200
*O Brasil, nesta data de 31 de janeiro de 2021, alcançou o número de 1400 mortos nas últimas 24 horas. Estamos acima de 1000 mortos há semanas.
Sim. O que estamos vivendo no Brasil já não difere muito do que se registrou em Auschwitz II – Birkenau em média de número de mortos. E não difere em NADA do que segue acontecendo há semanas em Manaus: morte por asfixia. Na Alemanha nazista, matavam com Zyklon B; no Brasil bolsonarista, matam sem Oxigênio.
Não bastasse isso, uma nova cepa de COVID 19 surge em Manaus. Dada a falta de leitos e de oxigênio, e a urgência em atendimento dos pacientes, tomou-se a decisão de transferir pacientes para outros Estados. Com essa transferência, se não feita com maior cuidado do que o já dedicado à Sars-COVID-19, poderá ser que a cepa de Manaus esteja sendo espalhada a outros Estados. Quando age para salvar vidas, o Governo central o faz com o risco de disseminar nova cepa do vírus, mais mortal.
A vacina, que já existe, poderia estar sendo recebida e distribuída em larga escala pelo Brasil, não fosse a decisão do Presidente da República de rejeitar, por conta de uma agenda geopolítica manicomial, a vacina criada no Brasil junto com um laboratório chinês. Também não teve competência, nem ânimo, para adquirir a vacina da Pfizer, alegadamente porque os termos contratuais propostos pela farmacêutica eram inaceitáveis para o governo brasileiro, numa demonstração de duas falhas trágicas: (i) descaso com a urgência, conveniência e oportunidade de ter a vacina no Brasil e (ii) incapacidade de negociar a benefício do Brasil um simples contrato com a altivez e o peso que uma das dez maiores economias do mundo tem de ter e demonstrar ter diante de uma empresa privada.
Ter a vacina a tempo e modo seria, numa avaliação funesta de seus aliados, uma derrota política para Bolsonaro, que deixou o discurso em defesa da vacina ser abraçado por Governadores, enquanto ele, Bolsonaro, insistia na aposta política em tratamento precoce e desprezo por medidas de distanciamento social, higiene e uso de máscaras – que nos valeu, digo de novo, 220.000 mortes numa conta que não para de subir.
É genocídio? É genocídio. É genocídio quando centenas de milhares de brasileiros morrem por inação ou definição clara de ação governamental ineficaz para salvar vidas, sabedoras as autoridades de que havia alternativa, de que havia ações a serem implementadas com urgência, mas não o fizeram para poderem lavar as próprias mãos e terem a oportunidade política de inculparem prefeitos, governadores e o Supremo Tribunal Federal, numa luta por ganho político. Quando tudo isso se soma e se arranja, temos evidências de que o Brasil vive um genocídio pensado e articulado de cima, para a tomada e manutenção de poder por um Presidente da República que precisa ser cassado, para o bem da nação.
Não é apenas a peste que assombra o Brasil. A fome está batendo à portas como corolário da peste, pela via do desemprego e do desalento, que já atingem perto de 40 milhões de brasileiros. Sem fonte de renda para dezenas de milhões de brasileiros, a fome é uma consequência fácil de intuir. Enquanto isso, o auxílio emergencial está a risco. O Governo diz não ter dinheiro para oferecê-lo sem romper o teto fiscal.
Ora, o Governo central está preocupado com equilíbrio de contas na Previdência e no Orçamento Geral da União, enquanto estamos em guerra contra um inimigo invisível que invadiu todo o território nacional e já matou dez vezes mais brasileiros do que a Segunda Guerra Mundial.
Derrube-se o Teto de Gastos, já! As próximas gerações orgulhar-se-ão da boa governança que teremos dado ao País num momento de extremo rigor, de desarticulação da economia, de falências, de dívidas, de dor, de fome e de morte. Saberão lidar com o custo que herdarão de nós. A alternativa é a vergonha eterna, a falência da sociedade brasileira pelas mãos desta geração hoje viva e econômica, intelectual e politicamente ativa.
Se falta visão mais clara do que se passa, o povo manauara deveria levar os bolsonaristas negacionistas aos hospitais para buscarem os corpos dos mortos, tal como os americanos fizeram com cidadãos e cidadãs de Weimar, levados a conhecer os horrores de Buchenwald.
O campo de extermínio de Aschwitz-Birkenau foi liberado pelos aliados no 25 de janeiro de 1945. Quanto a nós, chegamos agora ao fim do primeiro janeiro do nosso holocausto.
O setor aéreo está sob profundo estresse. Analistas avaliam que podem quebrar, desaparecer como serviço, com o advento dos riscos em torno da pandemia. Discordo.
A medicina vencerá o vírus, mas o mundo do trabalho jamais será o mesmo. A consequência disso não é o fim das aéreas, e, sim, o início da sua era de ouro.
Troquem a expressão home office para WORLD OFFICE: As pessoas não precisam trabalhar nem de casa, nem do escritório. Podem trabalhar DE QUALQUER LUGAR DO MUNDO, a qualquer tempo.
Não é mais preciso esperar as férias. A ideia de férias ficou ultrapassada.
Até do avião é possível participar de reuniões, hoje.
O turista será um profissional ou uma família tocando a vida enquanto passeia.
Sean Connery morreu. Não quero conversa. Não liguem para mim, não escrevam mensagens, não cobrem o Netflix. Não toquem a campainha, não batam à porta, não venham entregar o edredom lavado.
Connery não tinha a menor importância para a ordem geral das coisas. Mas aconteceu de ele ser o último pedregulho que me ligava ao século 20. Sua morte precipitou uma avalanche que invade e soterra minha ordem afetiva com o mundo.
Finding Forrester, de Gus van Sant, 2000
Ele foi Salinger em Finding Forrester – contra a proibição de Salinger de usarem sua obra no cinema. Um escritor recluso é o que à época este homem aqui aspirava a ser, não fossem as dores. E as contas.
A vida de Salinger dorme na minha cabeceira, se equilibra numa montanha desastrada de livros que existe para desabar de madrugada. E que desabou.
Me desapego do mundo agora. O gatilho do insuportável é meu. Está claro que a vida tem licença para matar, mas nenhuma elegância ao fazê-lo. A contragosto, vou tomar um banho escovar os dentes e comer um lanche besta. Não, não vou me matar: seria o triunfo da vaidade sobre o fracasso dos viventes. O mundo é que morreu mais do que podia esta semana. Não tolero abusos. Nem da morte.
Esse prédio à esquerda, atrás do coreto, foi o Grupo Escolar de São Vicente, a que chamavam de Grupão. Estudei lá de 1970 a 1972 – pré-primário, primeiro e segundo anos. Dona Rosa Feiz foi minha professora, lembro com carinho. Me comportava mal no recreio, já isso não deu muito certo.
Meu pai era então prefeito da cidade. Não bastasse isso para deixar um pivete se achar grande coisa, eu também havia nascido com uma cardiopatia leve, PCA (persistência do canal arterial). Os fantasmas da época fizeram minha família acreditar que eu não podia ficar nervoso, não podiam brigar comigo. Mas podia ver Zorro, Ultraman e Super Homem. Logo, eu podia tudo, até bater em todo mundo, invencivelmente – porque ninguém reagia, fosse por ter nascido do prefeito ou imperfeito.
No último dia de aula do Grupão em 1972, a classe toda se perfilou na praça, um aluno ao lado do outro, organizadamente, só os meninos. Uma cena bonita de ver, não fosse pelo detalhe de que todos estavam ali para me pegar, para me dar uma surra histórica, coletiva, corretiva.
Escapei no carro oficial, não sei o que é mais errado nessa história. Mas seo Domingos foi quem me salvou. Grande seo Domingos, que levava o Voz Operária escondido para o meu pai, eleito pela Arena.
E a gente acha que o mundo de hoje é que é confuso.
Aquele muro de moleques mal-encarados me endireitou para o resto da vida. Nunca mais entrei numa briga de mão, de rua. Foi só muito, mas muito recentemente que me toquei de que talvez eu tenha sido discretamente levado pelos meus pais (ou talvez, será?, pela diretoria do Grupão) a sair de lá por causa da cena do muro humano. Um muro baixinho – tínhamos 8 anos – mas aterrador, armado entre a calçada da escola e a do Correio, que havia tomado o lugar do coreto na praça. Uns vinte incas venusianos. Pelo menos.
Foi assim que descobri que eu não era a identidade secreta do Nacional Kid.
Passei a estudar no Raquel em 1973. Raquel também me ensinou muito na vida. Que leucemia é câncer no sangue e que com isso não se brinca (Perdão, Ivan, o inesquecível). Que beleza é contexto. Que ir à escola descalço podia não ser malcriação. Que ser muito, mas muito bom em salto em distância não era passaporte para as Olimpíadas, se não acontece de o professor enxergar futuro no garoto calado, alto e negro que surpreendeu a classe no dia, no único dia, em que ficamos competindo, pulando no areião que existia onde hoje é o Corpo de Bombeiros.
Fique registrado que, no Raquel, o Cid Pereira Maia fez duzentos abdominais seguidos em 1976 – eu sei, porque fui eu que contei: naquele ano, eu tinha operado o coração, adeus PCA, mas ainda não podia participar dos exercícios, então o professor me deu essa incumbência. A aula só acabou quando o professor mandou o Cid parar. O resto da turma tinha desistido no oitavo, no vigésimo, no máximo.
Que foi o máximo dançar o Vira representando o Raquel. Que a sabedoria mais pura podia emergir de uma aula de matemática da dona Irene. Que a beleza de uma deusa negra podia se materializar numa aula de história da dona Noemede. Que se levantar quando a diretora entrava na sala era óbvio. Que diretoras tinham nome e sobrenome: Nadir Sobral. Professores, só nome. Com exceção de um: Gentil Ferreira Filho. Que o mais Gentil dos professores podia ser também o mais rígido. Que o meu medo de palco não era lei universal, porque vi surgirem naquele cantinho de mundo dois grandes do teatro: Marcos de Azevedo e Charles Moeller, mais novos. Que ser atleta não impede que alguém se torne artista – como… o próprio Cid Pereira Maia…
O Raquel me ensinou a respeitar meus colegas, a curiar a diferença, a me interessar pelo que não é parte de mim.
Anos depois, talvez um ano só depois, outra lição sobre brigas teve lugar no mundinho que foi o Ilha Porchat Clube. Numa tarde de verão que calculo ter sido o de 1974, apanhei sem reagir de um garoto que hoje é juiz e que ficara bravo comigo, porque eu estava agindo como advogado. Um segundo garoto, cuja família tinha chegado a São Vicente fazia pouco tempo, tinha furtado, mas devolvido, a raquete de tênis de praia de um terceiro garoto que já era antigo no clube. Perdoei o arrependido, ninguém mais perdoou. Apanhei sem me mover, os braços cruzados. Quando o futuro juiz parou de bater no futuro advogado, virei as costas em silêncio e fui para casa. Me senti muito justo e comedido. Uns meses depois o terceiro garoto, que eu havia perdoado primeiro e por quem havia apanhado, recebeu o perdão dos outros muitos que frequentavam o clube, um a um, e os novos amigos dele passaram a rir de mim. Acharam ridículo aquilo de eu ter assumido aquela defesa de graça e de apanhar sem reagir. Outra lição que trago para a vida: pensar com independência, nunca ser conduzido pela volatilidade irracional, e cruel, dos grupos. Cobrar pelo que defendo, isso ainda não aprendi.
Aos 19 anos, o grande Leo Imamura me aceitou como seu discípulo na academia que mantinha na Domingos de Morais, e lá aprendi Wing Chun, Tai Chi Chuan e Jeet Kune Do. Foi minha maior escola. Na vida. As grandes lições conto outra hora, mas foram elas que me tiraram de uma profunda depressão e fizeram ser algo perfeitamente existencialmente compreensível uma lesão medular que aconteceria três anos depois, em 1986. Aqui, conto duas lições menores: continuei sem brigar na rua e aprendi a apanhar como gente grande. Barbaridade, Leo.
Leo era meu colega no Largo São Francisco. Não demorou muito para, entre as Arcadas, outras cenas me darem lições duras. Aquilo de não pensar como grupo, nem me submeter à lógica do pertencimento, logo mostrou seus limites. Minha classe na faculdade de Direito saiu toda da sala em protesto contra uma posição adotada por mim. E a classe estava certa; eu, errado. Ou seja, pensar sozinho não resolve. É preciso aprender a ouvir antes de decidir. É mentira que a verdade está toda dentro de nós. A verdade constrói-se por consenso? Não sei, ainda não terminei de ler o livro do mestre mais recente, Lenio Streck.
Aliás, livros. Meu pai, lá vem ele de novo, foi presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente. Quando eu tinha 35 anos, minha mãe entregou ao Instituto a biblioteca onde cresci – nem tudo era praia e escola. Aqueles milhares de volumes podem ter tido o mesmo destino do coreto da foto, mas sem o Instituto estas histórias pela geografia de São Vicente não teriam sido contadas aqui.
É tanta gente a quem preciso agradecer nesta vida, não é, Coelho? E ainda nem comecei a falar de você.
Trump é a materialização espetacular de uma esquecida Dialética da Natureza de Engels em sua eterna transformação.
Trump gerou uma nova qualidade de político mentiroso pela quantidade de mentiras que produz. Não é novidade político mentir. O novo é mentir tanto a ponto de deixar de ser político e transformar-se na própria mentira.
Ainda em Engels, Trump é uma negação desde criança. Cresceu e tornou-se a negação da negação. Nasceu cevada, tornou-se uma Devassa, uma cerveja de má qualidade, cujo nome é sinônimo de falta de pudor.
Trump é, por fim – e que seja seu fim – a consumação da lei materialista dialética da interpenetração dos contrários: era um capitalista que amava tanto o poder que acabou por destruir o império capitalista ao penetrá-lo como político.
Essa imagem publicada hoje pelo NYT mostra um discurso de campanha de Trump. Em vermelho, estão as mentiras que contou. Mentiu tanto que deixou de ser um capitalista mentiroso na política para tornar-se uma mentira na capital da política.
Foi posto na Casa Branca pelas mãos de um ex-comunista soviético, Putin; e deixará a Casa Branca entregando de mão-beijada o poder hegemônico global aos comunistas da China.
Laços fora, soldados! As cortes querem mesmo escravizar o Brasil. A voz rouca não alcançava nem a primeira fila, lá embaixo, onde deviam estar o Paulo Rogério, o Julio, o Maciel, a Roberta, a turma toda me vendo lá em cima, no palco, sem voz, de espada em punho e chapéu de bico, o Dom Pedro I do Raquel de Castro Ferreira da São Vicente de 1974. Por essas e outras, não fui incluído entre os alunos ilustres no jubileu de ouro da escola, em 2008. Mas o Tércio, que também estava por ali, foi. Ele hoje é prefeito, reeleito, da São Vicente do Raquel. E eu, hoje, na Brasília de Lula, não sou nada e fui ao desfile de sete de setembro com a Caroline. Tirei fotos. O Lula também estava no palco dele, com a voz rouca que é dele, faixa presidencial atravessada no peito, mas sem chapéu de bico. Nem espada. Nem a turma lá embaixo rindo, como riu de mim, até a diretora mandar todo mundo calar a boca, que era Dom Pedro.
Noutro sete de setembro, desfilei. Mas foi antes. Ainda estava no Grupão, que nem escola mais é. Virou secretaria, alguma coisa assim. Na minha turma tinha uma menina que gostava de falar o nome inteiro dela, que acabava com Fittipaldi. Em 1971, mesmo em São Vicente, ser Fittipaldi era coisa grande. Eu era filho do prefeito, o que também era coisa grande. Por isso, a turma do segundo ano gostava de querer me bater. Prática democrática, especialmente em tempos obscuros, isso de bater nos filhos do poder. E nem eles, nem eu sabíamos o que era Arena ou MDB. Pra mim, MDB era uma coisa verde, surda, acho que porque não tinha vogal; Arena era uma coisa esbranquiçada. Me lembrava praia. Meu pai era da Arena, mas a gente não falava dessas coisas aos seis, sete anos.
No sete de setembro em que meu pai era prefeito, e de que eu me lembro, lá estava eu de uniforme mais uma vez. Tia Carminha tinha comprado um quepe e um coldre e uma coisa que era uma arma, acho que tinha um cacetete, também. Ah, a doçura da infância! Fui ao desfile todo paramentado. A gente ficou na rua, mesmo. Não tinha palanque – ou, se tinha, nem minha mãe, nem eu estávamos lá. Vi passar o exército, tun-tum-tchi-tun-tun-tun…, e lá fui eu pra frente da tropa, marchando que nem eles.
Acharam lindo. Porém, era 1972.
Nessa época da minha infância, a memória dos meus ouvidos me conta que “Independência” era pronunciado rápido, ao som do repique que preparava a entrada de duas fortes batidas do bumbo: “ou Morte!”. Uma voz solitária gritava “Independência!”, e o coro respondia “ou Morte!”. Era uma ameaça, não um grito de liberdade. E aí vinha a banda e os uniformes e o passo firme sobre o chão escaldante.
Quando passei a falar desse tempo com meu pai, eu já no Largo São Francisco, onde essas ingenuidades não duram muito tempo, soube que o velho Jonas, no caminho de casa até a prefeitura, recebia das mãos do seo Domingos, o chauffeur, a edição clandestina da Voz Operária, embrulhado no São Vicente Jornal. Meu pai revelou, a mim estudante de Direto, que ele, antes de ir para a Arena, tinha sido vice-presidente da União Internacional dos Estudantes, que tinha ido à Tchecoslováquia na década de 1950, que lá conhecera Ilya Erenburg – e Lida, a motorneira tcheca com quem nadou nas águas do Vltava, para ciúmes eternos de dona Laura. Houve uma virada, e ela veio quando da sua visita àquilo que chamavam com voz tenebrosa de Cortina de Ferro…
Foi meu pai quem me apresentou Caio Prado Junior, lendo para mim extensas partes de Dialética do Conhecimento, numa edição que minha memória traidora me diz que era elegante, de capa dura, verde, letras douradas. Tenho até hoje, nalgum lugar, uma edição rota de “Así se templó el acero”, de Nicolai Ostrovsky, que ele trouxera do lado de lá da tal cortina, e que lhe teria custado muita dor, se o tivessem encontrado naqueles tempos. E foi por pouco.
Ele, prefeito, foi “denunciado” pelos irmãos Horneaux de Moura ao Exército, pelo que foi chamado a dar explicações ao comandante do 2º BC. Queriam saber o porquê de ele “ter ido a Moscou” e de a Irmãos Rodrigues publicar anúncios na Voz Operária (ou noutro veículo de esquerda da época). Irmãos Rodrigues era a fábrica de urnas funerárias da família de meu pai. Uma loja ficava quase ao lado da prefeitura. Nela, se lia: Serviço Funerário Central – SFC. Não por acaso a sigla de Santos Futebol Clube. Meu pai não me contou o que tinha conversado com o comandante. Apenas que discutiram visão de País, que tinha ido a Praga, não a Moscou, e como estudante, nada mais, e que isso teria bastado para lhe darem trégua. Era um homem muito sério e circunspecto, de modos gentis, quase britânicos, com o inevitável cardigan – no calor que fizesse. Não tinha o perfil que os preocupava.
Embora distanciado do debate e da ação das esquerdas, meu pai morreu stalinista. Afastou-se, por causa do que viu para além da tal cortina. Resolveu mudar-se de São Paulo para São Vicente, e separar, de um lado, o seu jardim, e, de outro, a General Jardim, onde fervilhava sua “alma matter”, a Escola de Sociologia e Política, de colegas como Plínio de Arruda Sampaio, de professores como Florestan Fernandes. Quem só conheceu o Jonas Rodrigues de São Paulo não reconhece o de São Vicente. Quem conhece o de São Vicente, sabe apenas que ele foi da Arena para o PDS, do PDS para o PP, que foi prefeito duas vezes e, talvez, que a Oposição o chamava de “prefeito papa-defunto”. Quem só sabe de sua vida em São Vicente, não sabe que, nas curvas dos anos de chumbo, ele operou para que ferroviários no Vale do Ribeira pudessem escapar da repressão. Que tentou, em vão, convencer Rubens Paiva a sair do país em tempo.
Houve mortes e houve gritos de liberdade desde então. Hoje sei o fracasso que foi não ter insistido em saber detalhes da conversa de meu pai com o comandante. Fracasso ainda maior do que aquele do meu sete de setembro como Dom Pedro. O vexame que foi aquilo. Cheguei em casa, subi correndo as escadas, me fechei no quarto e a espada me espetou a barriga quando pulei de cara na cama, chorando feito a criança que era, ainda em trajes de defensor perpétuo da pátria.
Postei alguns vídeos do Alexandre Olive na minha timeline do Facebook, e vou seguir postando. Um francês bonitão numa bicicleta.
Que tem isso de mais?
Bem, ele é uma pessoa que está viajando. Ele usa uma bicicleta, veja só, e circula livremente por ruas, estradas, caminhos, praças. “Ele está viajando” – percebe, por assim dizer, “aonde quero chegar”?
Alex saiu de Paris em direção a Monaco. Está agora na região de Marselha. Logo estará em Cannes, depois Nice e subirá uma das mais belas estradas do mundo até chegar a Montecarlo. Vai ser uma subida e tanto.
Ele está conversando com pessoas por onde passa, dorme na casa de pessoas que não conhece – ou que sim, depende.
Ele vem saindo de um lugar, indo para outro e depois outro, e nenhum deles é necessariamente uma farmácia ou mercado.
Ele está viajando por vilas e cidades, por um caminho que antigamente (seis meses atrás) trataríamos como “turístico”.
Por isso, ele está tirando fotos e fazendo vídeos perto de cabras, castelos, pontes, vacas, perto de pessoas, perto de pessoas que ele não conhece. Nem aquelas cabras da semana passada ele conhecia.
Nas nossas, nas suas conversas, quase todas virtuais, “viajar” é uma ideia remota, pertencente a um pretérito perfeito ou a uma projeção longínqua de futuro. Todos nos tornamos, em variada medida, viajantes do futuro – mais precisamente, viajantes do futuro do pretérito.
Mas, então, surge um viajante no presente, tão no presente que praticamente resgata um momento de glória para o gerúndio: ele está viajannnnndo.
A viagem de Monsieur Olive, com todo seu charme e carisma, fica entre o esperançoso e o perturbador, entre o gesto libertário e o estranhamente inesperado. É o registro de um agora improvável neste nosso eterno presente imediato da pandemia.
É uma viagem histórica e ele nem percebe.
Merci beaucoup, mon chèr.
Caio Leonardo
PS.: Conheci A. O. no TGV de Paris a Bruges, seis verões atrás, quando até eu viajava.
PS 2: Quatro anos depois, coitado, ele veio ao Brasil, perdeu-se no cerrado e levou 12 horas para ir de Brasíla a Alto Paraíso.
Há um Aldir Blanc em mim, que vem de lá de São Vicente, terra de misses e pivôs, perfume barato e Afonso Schmidt. Foi ali que aprendi que toda beleza é relativa, que pela semana eram belas as meninas uniformizadas em azul escuro, com o R branco do Raquel; que no fimdesemana vinham belas as paulistas, que não usavam uniforme, mas umas coisas que não tinham nada a ver com praia: brinco, relógio, essas coisas de gente que a gente chamava de paulista, ou fresca.
As meninas do Raquel moravam logo ali na rua Japão, de onde saíam os barcos dos pescadores da Colônia Z-4, que emprestava um canto para a escola, ou na México 70, a maior favela da cidade, que nós gostamos é do que é grande, como a conquista do Tri e caranguejo no Boa Vista. As paulistas desciam a serra para nos ver jogar mini-tênis e futebol, e dizer que eu era sem sal – aquilo doeu, Aline (é, eu lembro do teu nome, e eu tinha só 15; nós nunca mais nos vimos, mas eu lembro: doeu).
Um dia, eu já devia ter uns vinte anos, vi a R. na praia da Ilha Porchat, aonde o pessoal do Raquel nunca ia – eu achava, mais menino, é que porque era longe. Nos cumprimentamos, ficamos felizes de nos ver, ela que havia chorado uma vez, nós aos 12 ou 13, quando fiz que não queria ser mais seu par no grupo de dança do Vira da escola: quanta crueldade cabe numa criança? Ela estava linda de branco quando chorou – vestido rodado e rendado, de caxopa se tu queres ser bonita.
No contraste entre as jóias do fimdesemana, nos dois sentidos, e a R., que era loira e dançava comigo o Vira no grupo folclórico do Raquel, foi que descobri a teoria da relatividade: toda beleza é circunstancial, relativa, ambientada.
Mas quando a vi na praia, aquele outro dia anos depois, na praia proibida a quem do Raquel, a praia que ainda era dos paulistas no fimdesemana, hoje não mais, vi que Roberta era uma menina daquelas que a lida com o fogão deixa marcas na pele, pele macerada, macilenta, pele sem os cuidados de pele das outras meninas ali, que nem me achavam mais tão sem sal, vai ver que de tanto mar, de tanto sol, de tanto do mesmo, das mesmas circunstâncias, circunstâncias tão diferentes das de R., um dia tão linda.
Não vejo derrisão no poema de Aldir Blanc. Vejo a mim mesmo sinceramente fascinado por Roberta, como até hoje assim, sinceramente.
R. foi minha miss suéter. Mas também minha Iracema.
Fascínio tenho eu por falsas louras (ai, a negra lingerie), com sardas, sobrancelha feita a lápis e perfume da Coty…
Na boca, dois pivots tão graciosos entre jóias naturais e olhos tais minúsculos aquários de peixinhos tropicais…
Eu conheço uma assim, uma dessas mulheres que um homem não esquece. Ex-atriz de tv, hoje é escriturária do INPS e que, dias atrás, venceu lá o concurso de Miss Suéter.
Na noite da vitória, emocionada, entre lágrimas falou:
– Nem sempre minha vida foi tão bela, mas o que passou, passou… Dedico este título a mamãe, que tantos sacrifícios fez pra que eu chegasse aqui, ao apogeu, com o auxílio de vocês…
Guardarei para sempre seu retrato de miss com cetro e coroa com a dedicatória que ela, em letra miúda, insistiu em fazer:
Pra que os olhos relembrem, quando o teu coração infiel esquecer… Um beijo, Margô.
O foguete vai partir – já não é mais novidade, mas vai partir. O mundo parou, mas não por causa do foguete. Como quando Apollo era uma missão, as ruas queimam na América e um foguete sobe. Mas o foguete de hoje não é da América, as ruas não são de ninguém e o mundo já não é mais americano.
A polícia de Minnesota perdeu o controle das ruas, quando mal havia gente circulando por elas. O povo americano, morrendo em casa por omissão do governo, não suportou mais uma morte, e de um cidadão negro, agora cometida por um agente de Estado.
Stephen Maturen/Getty Images
O nome do policial assassino entra para a História como uma repetição que não é farsa: é uma coincidência reveladora. Seu nome é Chauvin. Sim, Chauvin, por todos os deuses, Chauvin. O mesmo nome do oficial de Napoleão que, dez vezes baleado, dez vezes voltou ao front, movido por uma obsessão nacionalista e racista. Você conhece Chauvin. Dele surgiu chauvinismo, e agora deu em mais um porco chauvinista que matou por desprezo e orgulho.
Governo que não serve nem protege, de nada serve.
No mesmo dia da morte de George Floyd, a bandeira americana, que sempre salvava o mundo em Hollywood, abandonava a cena da luta mundial contra o vírus com um gesto final e funesto de desprezo pelo concerto das nações. Trump anunciava a saída da OMS.
A antes onipresente bandeira americana não aparece nas mãos do seu povo nos protestos em Los Angeles, em Atlanta, em Nova Iorque, nem em Minneapolis, onde Chauvin matou Floyd. A polícia apanha dos manifestantes em Chicago.
A violência viraliza na América da quarentena, mas a bandeira sumiu, perdeu o sentido, o peso, a capacidade de unir; perdeu a confiança do seu povo.
Joseph Tam – Cantão, China (via Cassius P.)
Ao mesmo tempo, do outro lado do planeta, Duas Sessões definiam outro futuro com pés firmes no chão. Lá, de onde veio o vírus e onde o vírus foi contido, move-se um poder vertical, pervasivo, planejado, que trabalha para ser mais eficiente e construir capacidade de ação. Desde lá, o espectro de Hong Kong abre as asas sobre nós.
Enquanto os homens se perdem no Novo Mundo, o vírus se demora em devorar corpos, ideias, passividades – e um Império.
O foguete privado, o abandono da OMS e a morte de George Floyd marcam o fim da influência moral e da capacidade de agência dos Estados Unidos da América.
A Terra não lhe será leve.
Zaijian.
caio leonardo 30 de maio de 2020 Ano I do Império Chinês
Soon, oh soon the light Pass within and soothe this endless night And wait here for you Our reason to be here
Soon, oh soon the time All we move to gain will reach and calm Our heart is open Our reason to be here Long ago, set into rhyme
Soon, oh soon the light Ours to shape for all time, ours the right The sun will lead us Our reason to be here
LOGO Jon Anderson
Logo, ah, logo a luz Passa assim! e cura a eterna noite Espera o que vem Por isso estou aqui
Logo, ah, logo a vez De quem leva o ganho vai chegar O peito aberto Por isso estou aqui
Longa dor, sinto em teu olhar
Logo, ah, logo a luz A nós cabe o rumo: nós, a lei O sol me guia Por isso estou aqui!
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Em 1974, criou-se uma conhecida heresia que consiste em extirpar os dezesseis primeiros do total de vinte e dois minutos de The Gates of Delirium, primeira faixa do lado A de Relayer, sétimo álbum do Yes, primeiro depois da saída de Rick Wakeman. A música é uma alegoria ao romance Guerra e Paz, de Tolstói. Até alcançar os 16’, ela progride para um caos ruidoso, embora elaborado, que retrata uma batalha nas guerras napoleônicas. A banda então faz uma ponte que ralenta tudo quase até o silêncio, para dar lugar a uma melodia suave, cantável – uma transição que expõe o talento de Allan White, Steve Howe e Chris Squire. A partir dali, para desenhar a paz que chega depois da guerra, Howe usa cítara elétrica ao executar uma linha melódica sideral que culmina nos vocais agudos de Jon Anderson, que também assina a letra. Esses seis últimos minutos foram lançados (lancetados?) como single com o nome Soon*. A depender das tuas cores no verdadeiro palio di Siena que são as brigas entre fãs de bandas diferentes, essa canção é ou um dos momentos mais transcendentes ou mais piegas da história do rock.
Relayer fez sucesso, marcou época e ajudou, acredito, a fazer de Anderson essa figura angelical e precursora da New Age, ele inteiro e a família junto sendo dedicados a causas do planeta. Em sua página no Facebook, Anderson aparece festejando o recém-lançado documentário da filha sobre uma comunidade indígena em Dakota (Sioux), com a qual ele próprio e a esposa passaram um tempo anos antes. Na mesma página há um vídeo de agradecimento ao coronavírus por nos ter feito parar e pensar no que somos e fazemos.**
É de perder o fio da meada. Não sei bem o que me levou a querer ouvir essa música ontem… Ah! Sim. Facebook. Jon Anderson apareceu entre as figuras públicas cujo perfil na rede eu poderia pensar em seguir, de acordo com o algoritmo do Vale do Simplismo. Tinha deletado tanta gente antes…: de Jack DeJohnette a John Travolta; de Claire Daines a Anne Leibowitz. Mas então surgiu Jon Anderson, a filha, o documentário, os índios, a gratidão ao coronavírus e acabei me lembrando da coisa toda em torno de Soon.
Assisti ao show de Anderson em São Paulo, na década de ‘90. Lembro, coitado, do tanto que insistiram em que ele estripasseRelayer e consumasse de novo o tal ritual herético. Pois foi. Muito, mas muito a contragosto, Anderson parou o show, calou a banda e avisou que cantaria à capella. E cantou. Enquanto cantava, ficou fazendo com as mãos umas volutas infantis, imitando um maestro e regendo o público, a quem, com isso, chamava abertamente de tosco. Soon é a Creep, é a Smells Like Teen Spirit, é a O Bêbado e a Equilibrista do velho Jon: O sucesso que ele não suporta ter que carregar para o decurso dos séculos.
Anderson, se fosse torturado ao ponto de novamente cantá-la em 2020, seria recebido por uma outra audiência, outros ouvidos, seriam outros até mesmo os ouvidos que a conhecem desde 1974, como é o meu caso, eu que a ouvi por obra e graça dos irmãos Negreiros, Ricardo e Gilberto, que sempre tinham os melhores e mais novos discos em casa – a casa da esquina da Freitas Guimarães com a Messia Açu, um portal que levava a nós, calungas, à swinging London pela ponta de uma agulha sobre pratos giratórios de vinil.
Éramos cinco; os Negreiros, sete. Não resisto à tentação de dizer que, pelo menos na média, éramos seis. No correr dos anos ’70 e ’80, as adolescências das nossas duas famílias chegavam e partiam em biografias que se cruzavam. A coisa não ficou sem romance, mas a Laís não se casou com o Ricardo; a Leila não se casou com o Gilberto; o Luiz não se casou com a Bia; e eu, pobre de mim, só escrevo isto aqui para ter como aparecer na história, porque o que interessa é que foi esse intercâmbio discográfico e a amizade do mais novo dos Negreiros, Fernando, com o mais novo dos Bessas Rodrigues, Xande, que fez surgir um Rick Wakeman brasileiro, que se assina Allex Bessa*** e se tornou tecladista, compositor, arranjador e baluarte do rock progressivo.
Coadjuvante sem fala nesse mundo, fui atrás daqueles últimos seis minutos d’Os Portões do Delírio. Reaparecia a ideia de fazer uma versão da letra. Era madrugada, o sono não vinha. Peguei a letra, compus a versão. E o que aconteceu então foi que a letra acabou inevitavelmente invadida pela quarentena e suas circunstâncias.
Em 1984 (o ano, não a outra distopia), Jim Morrissey perguntava How Soon is Now? Minha adolescência estava na curva descendente e o drama da solidão que Morrissey descrevia era assim: Tem esse lugarque dá pra você ir e encontrar alguém para amar de verdade, mas aí você vai e fica na sua, e vai embora na sua evai pra casa e chora e quer morrer.**** Era triste. Mas na distopia de 2020, na curva ascendente da pandemia, sair de casa é cair numa arena de gladiadores e gritar Ave, César, os que morrem te saúdam! só que com a voz abafada atrás de uma sufocante máscara de pano, o inimigo mortal sendo qualquer coisa à sua volta: a maçaneta, o botão do elevador, o filho do vizinho, a mão do frentista – não o frentista inteiro, não o chumbo na gasolina, não o ar poluído, não o vira-latas que passa: não, todos esses estão redimidos, o inimigo é apenas a mão do frentista, a mão da moça do caixa, a mão que balançou o berço. O inimigo está nas extremidades, nos pontos de tangência, no ar que invade a sala quando algum tresloucado desperta e abre as janelas, pálido de espanto. Não estamos na Peste de Camus, estamos na Náusea de Sartre.
Está trancada a rua da amargura. Animais selvagens tomam as cidades. Num prenúncio desse quadro, o cavalo Remorex venceu sem jóquei nada menos do que o próprio _pálio deSiena no ano passado.***** Tudo parecia normal, como sempre que não se sabe a verdade, teria murmurado Cortázar. Um mundo sem humanos se prefigurava, enquanto Matteo Salvini, o líder da extrema-direita italiano, aplaudia no Twitter: Pazzesco, incredibile, fantástico!
Hoje, os que se ocupam de tentar sobreviver mergulham na sua própria versão de Xavier de Maistre, com o universo reduzido a uma recorrente viagem ao redor do quarto de dormir ou da cela na Papuda; ao redor de qualquer dos círculos do inferno, todos e cada um sendo uma mônada embasbacada diante da Tela Ubíqua, os olhos esbugalhados, laranja mecânica sem chapéu-coco, obrigada a sofrer com as imagens e os áudios do escândalo do dia, com a censura ao bom-senso, com a bestialidade se impondo, sem esperança de que alguém perca por um instante a ilusão e descubra estar sob a vigência, não de um Estado de Exceção, mas sim do mais total ilusionismo. E os dedos postam e postam e postam: O mundo como vontade e prestidigitação.
Concluo sem esforço, porque desprezo o ativista que rompe o isolamento, que todo homem é uma ilha, dependente e sob ataque do mar de telas e medos que o cerca por todos os lados. O ruído desse mar não vem de fora, lá faz um silêncio de abandono. Vem da mesma tela em que disputo agora, neste instante, a tua atenção. Então, vai daqui não uma reza, mas esta pequena heresia, e que ela, em seu pecado original de ser ou não ser piegas, ocupe um pouco do teuTempo, por isso estou aqui, e que logo, ah…, logo a luz passe assim!, e cure esta eterna noite.
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Caio Leonardo, no Oitavo Dia do Maio do Primeiro Ano da Pandemia.
**** There’s a club/ if you’d like to go/ you could meet somebody/ who really loves you./ So you go and you stand on your own,/and you leave on your own,/ and you go home,/ and you cry/ and you want to die…” How Soon Is Now, The Smithshttps://www.youtube.com/watch?v=hnpILIIo9ek
***** Em 2019, o palio di Siena foi vencido pela contrada della Selva, apesar de o jóquei ter caído do cavalo na primeira volta. O cavalo Remorex continuou correndo sozinho, perdeu colocações, mas passou à frente de três e ganhou no fotochart. Foi algo como se a final do Brasileirão fosse um Palmeiras e Corinthians e, aos 45′ do segundo tempo, entrasse em campo um porco ou um gavião que pusesse a bola pra dentro. Nada menos que isso. O primeiro ministro do Interior da Itália, o ultradireitista Matteo Salvini, estava assistindo e comentou “Pazzesco, incredíbile, fantástico!“. Confira: https://youtu.be/RqvjOkO1Y1Y