Pai e Filho

(texto de 8 de setembro de 2010)

Laços fora, soldados! As cortes querem mesmo escravizar o Brasil. A voz rouca não alcançava nem a primeira fila, lá embaixo, onde deviam estar o Paulo Rogério, o Julio, o Maciel, a Roberta, a turma toda me vendo lá em cima, no palco, sem voz, de espada em punho e chapéu de bico, o Dom Pedro I do Raquel de Castro Ferreira da São Vicente de 1974. Por essas e outras, não fui incluído entre os alunos ilustres no jubileu de ouro da escola, em 2008. Mas o Tércio, que também estava por ali, foi. Ele hoje é prefeito, reeleito, da São Vicente do Raquel. E eu, hoje, na Brasília de Lula, não sou nada e fui ao desfile de sete de setembro com a Caroline. Tirei fotos. O Lula também estava no palco dele, com a voz rouca que é dele, faixa presidencial atravessada no peito, mas sem chapéu de bico. Nem espada. Nem a turma lá embaixo rindo, como riu de mim, até a diretora mandar todo mundo calar a boca, que era Dom Pedro.

Noutro sete de setembro, desfilei. Mas foi antes. Ainda estava no Grupão, que nem escola mais é. Virou secretaria, alguma coisa assim. Na minha turma tinha uma menina que gostava de falar o nome inteiro dela, que acabava com Fittipaldi. Em 1971, mesmo em São Vicente, ser Fittipaldi era coisa grande. Eu era filho do prefeito, o que também era coisa grande. Por isso, a turma do segundo ano gostava de querer me bater. Prática democrática, especialmente em tempos obscuros, isso de bater nos filhos do poder. E nem eles, nem eu sabíamos o que era Arena ou MDB. Pra mim, MDB era uma coisa verde, surda, acho que porque não tinha vogal; Arena era uma coisa esbranquiçada. Me lembrava praia. Meu pai era da Arena, mas a gente não falava dessas coisas aos seis, sete anos. 

No sete de setembro em que meu pai era prefeito, e de que eu me lembro, lá estava eu de uniforme mais uma vez. Tia Carminha tinha comprado um quepe e um coldre e uma coisa que era uma arma, acho que tinha um cacetete, também. Ah, a doçura da infância! Fui ao desfile todo paramentado. A gente ficou na rua, mesmo. Não tinha palanque – ou, se tinha, nem minha mãe, nem eu estávamos lá. Vi passar o exército, tun-tum-tchi-tun-tun-tun…, e lá fui eu pra frente da tropa, marchando que nem eles. 

Acharam lindo. Porém, era 1972.  

Nessa época da minha infância, a memória dos meus ouvidos me conta que “Independência” era pronunciado rápido, ao som do repique que preparava a entrada de duas fortes batidas do bumbo: “ou Morte!”. Uma voz solitária gritava “Independência!”, e o coro respondia “ou Morte!”. Era uma ameaça, não um grito de liberdade. E aí vinha a banda e os uniformes e o passo firme sobre o chão escaldante. 

Quando passei a falar desse tempo com meu pai, eu já no Largo São Francisco, onde essas ingenuidades não duram muito tempo, soube que o velho Jonas, no caminho de casa até a prefeitura, recebia das mãos do seo Domingos, o chauffeur, a edição clandestina da Voz Operária, embrulhado no São Vicente Jornal. Meu pai revelou, a mim estudante de Direto, que ele, antes de ir para a Arena, tinha sido vice-presidente da União Internacional dos Estudantes, que tinha ido à Tchecoslováquia na década de 1950, que lá conhecera Ilya Erenburg – e Lida, a motorneira tcheca com quem nadou nas águas do Vltava, para ciúmes eternos de dona Laura. Houve uma virada, e ela veio quando da sua visita àquilo que chamavam com voz tenebrosa de Cortina de Ferro… 

Foi meu pai quem me apresentou Caio Prado Junior, lendo para mim extensas partes de Dialética do Conhecimento, numa edição que minha memória traidora me diz que era elegante, de capa dura, verde, letras douradas. Tenho até hoje, nalgum lugar, uma edição rota de “Así se templó el acero”, de Nicolai Ostrovsky, que ele trouxera do lado de lá da tal cortina, e que lhe teria custado muita dor, se o tivessem encontrado naqueles tempos.  E foi por pouco. 

Ele, prefeito, foi “denunciado” pelos irmãos Horneaux de Moura ao Exército, pelo que foi chamado a dar explicações ao comandante do 2º BC. Queriam saber o porquê de ele “ter ido a Moscou” e de a Irmãos Rodrigues publicar anúncios na Voz Operária (ou noutro veículo de esquerda da época). Irmãos Rodrigues era a fábrica de urnas funerárias da família de meu pai. Uma loja ficava quase ao lado da prefeitura. Nela, se lia: Serviço Funerário Central – SFC. Não por acaso a sigla de Santos Futebol Clube. Meu pai não me contou o que tinha conversado com o comandante. Apenas que discutiram visão de País, que tinha ido a Praga, não a Moscou, e como estudante, nada mais, e que isso teria bastado para lhe darem trégua. Era um homem muito sério e circunspecto, de modos gentis, quase britânicos, com o inevitável cardigan – no calor que fizesse. Não tinha o perfil que os preocupava.

Embora distanciado do debate e da ação das esquerdas, meu pai morreu stalinista. Afastou-se, por causa do que viu para além da tal cortina. Resolveu mudar-se de São Paulo para São Vicente, e separar, de um lado, o seu jardim, e, de outro, a General Jardim, onde fervilhava sua “alma matter”, a Escola de Sociologia e Política, de colegas como Plínio de Arruda Sampaio, de professores como Florestan Fernandes. Quem só conheceu o Jonas Rodrigues de São Paulo não reconhece o de São Vicente. Quem conhece o de São Vicente, sabe apenas que ele foi da Arena para o PDS, do PDS para o PP, que foi prefeito duas vezes e, talvez, que a Oposição o chamava de “prefeito papa-defunto”. Quem só sabe de sua vida em São Vicente, não sabe que, nas curvas dos anos de chumbo, ele operou para que ferroviários no Vale do Ribeira pudessem escapar da repressão. Que tentou, em vão, convencer Rubens Paiva a sair do país em tempo. 

Houve mortes e houve gritos de liberdade desde então. Hoje sei o fracasso que foi não ter insistido em saber detalhes da conversa de meu pai com o comandante. Fracasso ainda maior do que aquele do meu sete de setembro como Dom Pedro. O vexame que foi aquilo. Cheguei em casa, subi correndo as escadas, me fechei no quarto e a espada me espetou a barriga quando pulei de cara na cama, chorando feito a criança que era, ainda em trajes de defensor perpétuo da pátria.

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