DOIS VIZINHINHOS

_ A mamãe te mostrou ou você viu?

_ Sua mãe mostrou a foto no carro.

_ Então, você não viu.

Maitê traz os óculos de coração

vermelhos

que ganhou na Feira do Paraguai

e Pedro prova os amarelos

ovais

que se entediavam sobre Sebastião Salgado no aparador da entrada.

Passos animados invadem a varanda.

O sol desenha nuvens amarelas vermelhas (infantis)

e prateadas

cinzas-escuro, como as volutas dos meus cabelos

longos de isolamento.

As cores se espalham

dramaticamente

por todo o horizonte

enquanto o sol se põe detrás de outros vizinhos

do lado de lá da serpente de pedras portuguesas

que rebola do Sul para o Norte

entre espelhos d’água,

palmeiras esparsas e outras complacências.

_ Um beija-flor mora aqui embaixo, Pedro.

_ É?

Ele encontra a pequena lanterna de ferro cor de jade

sobre a mesa de tampo de junco esturricado pela seca.

Os vermelhos os amarelos as linhas prateadas

mergulham devagar.

_ Hora de deixar o tio Caio descansar.

(Nunca vou me cansar. Nunca vou descansar)

_ Tio Caio, me mostra?, Pedro aponta para o microscópio, que está quebrado.

Pedro quer olhar pelo microscópio quebrado.

Pego a peça pesada

desço à altura dos olhos dele.

_ Não dá pra ver nada.

_ Tá quebrado.

Fico imaginando a frustração de olhar por um microscópio

de mais de cem anos de idade

aos quatro anos de idade

e não enxergar um mundo mais fascinante

do que o do caleidoscópio

que ficou na varanda

sobre o sofá redondo, agora sem luz.

Na Avenida

O garoto deixa cair a perna do muro.

 

Deve ser o 8.

Ele avança passo firme até o meio-fio.

Estica o braço.

 

É o 23.

Faz que não para o motorista.

 

O motorista freia, para e abre

a porta de saída –

que ainda era a da frente.

O garoto e o motorista se ameaçam

com os olhos

pelo tempo da descida de uma senhora:

sacola de plástico quadriculada,

acelga e bengala amanhecida.

Ela se agarra onde pode.

O último degrau é o abismo.

Os dois aguardam o gongo

enquanto ela aterrissa:

albatroz-de-sobrancelha-negra

de lenço na cabeça.

As asas balançam na direção da

Rangel Pestana.

 

O câmbio berra, engasga e

o 23 ruge em direção à praça do Correio.

O garoto sente passar o calor do motor,

a porta da frente se fecha com estrondo.

Os olhos se largam: empate.

 

O garoto dá cinco passos de costas e

finca de novo a sola do bamba no muro –

no último muro de casarão

na Presidente Wison.

As costas no muro,

a palma das mãos entre as costas

e o muro.

Ele sente alívio e incômodo:

no frio do muro branco,

nas rugas grossas do muro chapiscado.

Faz sombra a mangueira

que vem de dentro do casarão.

 

O garoto recosta, com cuidado,

a sua cabeça no muro, e aplica

um olhar sem direção, ausente.

 

Ausente, nada.

No outro lado da avenida,

de um certo sexto andar,

Gisela pode estar espiando.

O olhar transita

daqueles seis andares do edifício Itu

para os doze andares do São Rafael… Lá,

mora a professora Mari!… O garoto

deixa cair a perna do muro.

_______