É passada a hora de vidas serem salvas na Palestina. Vidas demais foram perdidas. Histórias inteiras apagadas com todos os seus registros, do sofá da sala ao dente de leite; da universidade ao hospital; do médico que não via sentido em construir sua carreira em outro país – e como ficariam meus pacientes? –desse médico aos poetas, às romancistas, às professoras, aos alunos; dos padeiros aos que cultivavam oliveiras. As vidas de uma nação inteira que poderia ter sido, mas não será.
É hora de projetos políticos recuperarem o eixo do que seja digno querer para seu povo, do que é justo entabular (sentarem-se juntos à mesa) com seus vizinhos.
Não é digno que Israel aniquile a nação Palestina para proveito seu. Não é justo que Israel queira o território Palestino para si, eliminado tudo que ali havia até minutos atrás e que continua a ser destruído.
Avança, Mundo desnorteado pelos espasmos caóticos de lideranças cuja visão de futuro é a de nos fazer recuar, a todos, a uma ordem que se assemelhe aos arranjos aristocráticos, senão teocráticos, de antes das revoluções liberais de 1776 e 1789.
Hoje, Tempo é morte. Tempo é mortandade em massa. Não há tempo para tergiversações. Não há tempo para concessões a máquinas de guerra a serviço de nada, a não ser o caos.
A Humanidade se afirma na negação do caos e na construção da ordem em que todos são contemplados e todos podem contemplar o horizonte segundo seu entendimento ou na busca de algum entendimento.
Paz na Palestina. Paz na Terra em todas as suas dimensões.
Ai, como é pequena a minha vila. Perdeu-se Helena, a velha cabrita
Ai, como é pequena a minha velha. Um balde que seja, e ela chora.
Ai, como é pequeno o meu olho, é com ele que escolho, no alto da montanha, no telescópio que herdei da guerra, o que hoje verei para além da minha terra
Ai, como Júpiter é longe!
_Xô, Ganiméda, vá cagar no mato que estou cá a filosofar, cadela do inferno, só lhe faltam outras duas cabeças!
jÓ, lá, que é Júpiter, meu deus, senhor do meu destino. Jove, faço este sacrifício. Hoje vai Calista, porque já mal põe ovos, o senhoire não há de se opôire. Toma! Depois lavo as mãos.
É que mal, e muito, cá estamos, a Carolina Augusta acorcundada e gemente, os poucos cabritos muito alegres e brincalhões, o senhor os perdoe, é de sua natureza, e a verdade é que, vai e vem, eu até os xingo, mas não com palavrões, tento metê-los em ordem, e grito:
_ Vá-te, querubim abençoado! Pára com isso, ungido do senhor! Vou-te tosar as tetas, se não te aquietares, Eurovina!
Pois é assim.
Mas senhor Júpiter não mais o vejo, espia que me distraio. Um tostão e já o alcanço. Partiu-se de onde estava, se ergueu sobre essas nuvens que vieram a dar cá no Brasil e me sabem a Rio Frio ou OPorto. A saber também andará um dia a polícia a vir cá, sei dos meus pecados, mas as gentes do Rio Frio, pequena que é a aldeia, hão de sumir do mapa, não as gentes, minto, a aldeia, igual àqui nesta Vila Ventura, quadrado eterno ensimesmado e benfazejo, cantinho dentre cantinhos nem cantados desse mundo.
As gentes d’OPorto que cantem os meus bessas. Eu cá sou silêncio e abrigo e sonho e outros tormentos.
Por isso, oro:
Ó senhor deus Júpiter,
olhá-lo por um instante que seja é um alento
(é nesse momento
que sinto como é pequena –
essa minha vila)
É um alento o seu sacrifício e toda dor que sente,
no corpo, ó Júpiter,
ao atrair e engolir para dentro do teu próprio corpo
todos esses corpos celestes
que, à sua falta, espatifariam os príncipes da noite,
essa suas quatro pedrinhas,
suas bolas de gude que rolam eternas no veludo azul –
Cuida da nossa vilha,
Vênus, Terra, Marte e Mercúrio.
irmão mais velho,
deus meu do nosso lugar.
O universo foi generoso ao postá-lo onde está
e assim permitir a vida – mesmo que haja consequências, porque, hom’essa, ai que há consequências, olha o que é conviver com Ádila e Procópio, o meu inferno, meus outros. É a vida. Eu, pelo menos, tenho esse entendimento maior da vida, o meu é muito maior do que o do Procópio, isso sim, não é que seja de disputar qualquer coisa, ele que fique com os ovos, mas tenho esse entendimento maior por ter sua graça em mente, não essa cruz que carregam quem mal-me-quer. Por isso oro em seu intento, rei do céu escuro, oro noite após noite, ainda que chova, Jove, e como chovia nos Trás-os-Montes de Carolina Augusta, assim como chove e chovia no meu OPorto, mas nem montes nem portos nem Ádilas nem Procópios: aqui na Vila Ventura que de mim tudo anda a tirar, mas a mim me deu Taminha e Lica, eu seguro leve meu telescópio e sou o Universo refeito em mim – um seu penhorado refilho.
_ Sai, Branquinha, olha tuas penas na barra da minha calça! Sai!, que ora é hora de orar.
Onde está? Onde está, meu deus? Giro, giro, giro, que gira esse giro pelo universo…
Aí está, maroto. Ainda tenho muito a jamais dizer.
O Grande Império do Norte colapsou hoje. A eleição de Donald Trump são as teses de Lutero pregadas na porta de um céu de satélites artificiais. Uma ordem começa a ruir rapidamente a partir de agora, assim como ruiu o domínio papal com algumas marteladas reformistas na madeira. Ao lado do símbolo alaranjado da decadência, na data de hoje, estava o novo imperador de todas as Terras.
I – Este Lado
Os EUA têm tudo para se dissolver em estados menores. A Europa, também.
A diferença é que a América Central vai invadir os EUA, não a Europa. Esta vai ser invadida pela África. Dois processos já em curso.
Povos (gentes, multidões) e não monarcas, menos ainda aristocracias, a inviabilizarem a ordem e a reinstaurarem o feudalismo no formato antecipado pelo crime organizado no Brasil – este, aliás, o nosso destino: feudos pentecostais ou libertinos, a separar rua de rua, micropoderes violentos e sórdidos, saberes e instituições se dissolvendo, ora em pensamentos mágicos, ora em carnagem límbica.
II – O Outro Lado
A China é o futuro de um pretérito perfeito: será o que foi e deixou de ser – o lugar das maiores riquezas do mundo.
A Rússia continuará sendo o que sempre foi: o MDB do mundo, o Pedro 2° do planeta, o poder moderador da humanidade. Sem modos, no entanto.
III – Sicut in Caelo et in Terra
A grande novidade será o exercício – concretamente celestial – do poder sobre a Terra – o planeta.
Poder exercido pelo detentor único, onipotente, incontrastável, imperceptível, subestimado, discreto e espalhafatoso, ridicularizado e ridicularizante; criador, instalador e beneficiário absoluto da já onipresente versão humana da Esfera de Dyson: o Carvalho Almiscarado reinará sobre tudo que hoje está vivo até a consumação dos tempos.
A Esfera de Dyson de Elon Musk é tão transparente e evidente como os satélites que a compõem. A Esfera do Carvalho não rodeia o Sol, mas a Terra; a esfera do Almiscarado não absorve toda a energia de uma estrela em favor de uma civilização, mas sim controla e detém o poder de permitir fazer uso de toda energia e riqueza da Terra em favor da sua mente.
IV – O Anti-Homem e Aquele Acima Dele
Napoleão ousou, na cerimônia em que foi ungido imperador, pegar a coroa das mãos do representante da igreja (ou seja, do representante da eternidade, do poder divino) e usar suas próprias mãos para coroar-se a si mesmo. Com esse gesto, unia o Permanente e o Transitório, o Divino e o Secular, o Eterno e o Temporal. E não se submetia a poder algum, humano ou transcendental.
Que ninguém se engane: Elon Musk não precisou de qualquer gesto para assumir o poder sobre tudo que é humano, aí incluso a manifestação do divino.
E. M. apenas está vivo, sendo quem é e fazendo o que faz, no dia em que o Anti-Homem foi eleito.
Trump é instrumento não para realizar, mas para tornar inevitável a ascensão de Musk ao controle absoluto.
V – A Ilusão do Exagero
Existem ONU, OTAN, União Europeia, Direito Internacional Público, Tribunais Internacionais, bombas atômicas, balas de revólver, facas, carros na rua, lobos solitários, eventos climáticos extremos, ratos, amantes, Escherishia coli: Nenhum poder é absoluto, todo homem pode morrer e, com ele…
Todo homem pode morrer… ainda?
Epílogo – Et Nunc et Semper
O poder do Imperador Artificial talvez já seja imortal. Assim como Musk é o almíscar artificial; Elon talvez já seja a mente artificializada e posta em rede em torno do planeta.
Starlink – a “ligação com a estrela” – é um nome muito bom para substituir a expressão “Esfera de Dyson”. A álgebra do poder pós- Terra (é o que estamos vivendo) tem seu enigma resolvido: x = X. E nem mais um pio (ou tweet). Porque não existe mais a comunicabilidade que Habermas defende, porque tudo é comunicado ao mesmo tempo em todo lugar por todos – aparelhos, aparatos ou humanos. Tudo é ruído. Tudo diverte na ordem subvertida absoluta e irremediavelmente.
Tudo é divino, tudo é maravilhoso.
P.S.: A não ser que deixemos de depender de Tesla, abandonando toda esperança no evangelho do eletromagnetismo.
P.S. 2: E a China diante disso tudo? Continuará Zhongguo: o País do Centro do Mundo – e que passe bem o que não for seu mundo.
São onze horas da noite, sei que chove lá fora, mas é só o que sei. Passeio pelos canais de televisão, nada me prende. Minha cabeça está em ziguezague, desnorteada, um labirinto em mar alto, uma tormenta aqui dentro. C. disse que não vem. Por e-mail. Disse que tinha voltado para o noivo (um recado para eu não insistir), e que a história de nos casarmos em Praga era – não lembro bem o que ela disse. Minha mente vagueia, sem ordem, sem rumo. Saí de Londres, e vim para Paris – esse refúgio da indiferença de Covent Garden, onde tudo é encantador, até as pessoas são encantadoras, só não se aproxime. Vim para Paris, e estou despejado sobre a cama, hotel Crystal. Chove lá fora, e assisto televisão. Não, passeio desatento pelos canais. Andrea Bocelli canta em Notre Dame. É véspera de natal, e ele canta a alguns quarteirões de mim. Estou na rue de Saint Benoît, a cem passos de Le Bilboquet, que Eros me apresentou em 96. Um refúgio ao som de jazz, onde me diverte o fascínio do jazz sobre os franceses. Um refúgio. Controle remoto na mão, toco as teclas compulsivamente. Tocatta e fuga em dor maior. Dor seca, que não vem pra fora. Catatonia. Notre Dame de novo, Bocelli ainda canta. Mas não vou até lá. Hoje é véspera de Natal, faria sentido. Se eu fosse um turista. Está chovendo, e C. me deixou. Por e-mail. Era para estarmos nesta mesma Paris hoje. Daqui, para Praga. Em Praga, na Catedral de São Vito, trocaríamos alianças, só nós, e começaríamos o quê, mesmo? Ela estava certa. Vim para Londres passar um ano de reflexão e cosmopolitismo. Até agora, solidão pela primeira vez, e a violência do individualismo utilitarista que é a alma britânica. Se isto é o grande mundo, eu quero descer. Quero … não sei o que quero. Minha mão não pára de correr os canais de TV. Aí está Bocelli mais uma vez. A voz quente não me comove, só constato a beleza da coisa, a nave portentosa, os vitrais, a pompa… mas eu sou eu e as minhas circunstâncias. Nada me comove. Estado de choque. Um e-mail recebido às quatro da manhã. Naquela noite, levantei da cama em High Holborn para checar se havia mensagem. Como um presságio. Senti como se o chão tivesse, lá vai lugar comum…, mas o diabo é que esse lugar comum é tão verdadeiro…, pronto, vou dizer: fiquei sem chão. O chão se moveu, mesmo. Pensei que ia cair. Que é isso? Onde estou? Que está acontecendo? E tudo o que acontecia era uma mensagem eletrônica vinda do Brasil, e que me informava de que eu estava mesmo sozinho, e que aquela história de casamento já era. Agora estou em Paris. Peguei o Eurostar, e vim – sem pensar, sem sentir. Estou catatônico. Não sinto nada. Não sei o que estou fazendo, nem para onde vou ou para onde ir. Sozinho. Nunca a solidão me incomodara. Sempre me bastei. Concluí que era horrível me bastar, e que era preciso entregar-me a alguém. Me entreguei. E ela me enviou um e-mail de madrugada, dois dias antes de embarcar. Nem um telefonema. Fez bem. Teria sido um erro, mesmo. Não havia futuro, não havia história, não havia estofo, havia romantismo e aventura, sem as bases para construir uma vida a dois. Só havia a vaidade de ambos, de ter encontrado algo bonito de se viver. Uma aventura entre Paris e Praga, as duas mais belas capitais do mundo, celebrações do gênio do homem ao longo dos séculos. A Praga que encantou meu pai, sua história com Lida – Ludmila – a motorneira, a quem ele nunca mais viu. O fascínio das histórias dele, meu pai, na Cortina de Ferro, quando líder estudantil e comunista. Fazer amor no Vltava. Ele fez, com Lida. Antes de Laura, antes de minha mãe. C. era minha Lida ou minha Laura? Nenhuma delas. Nem eu sou meu pai. Sou um corpo jogado sobre a cama que aperta botões compulsivamente. É véspera de Natal. É meia-noite. Ligo para minha mãe. Feliz Natal. Ela está preocupada comigo. Bocelli ainda canta. E eu não durmo. Não dormirei até a catatonia ser derrotada.
25 de Dezembro de 1999
Acordei, desci à uma da tarde. Perguntei ao concierge se havia algum marché au puces aberto. Ele disse que não, cheio de uma certeza estranha. Perguntei se por causa do Natal. Ele disse que por causa da chuva que caíra durante a noite. A maior tempestade que a França já tinha visto. Ele não soou muito científico. Mas emendou: O Bois de Boulogne, devastado; as árvores ao longo do Sena, no chão. Saí por Saint-Germain des Prés em direção aos bouquinistes, e o que vi foi destruição. Desviei de galhos, entulho. Como não tinha percebido a gravidade da chuva? A janela do quarto era muito pequena, ficava no alto ou parecia estar no alto, vista daquele eterno plano horizontal da cama. Tinha visto clarões por ela, ouvido a chuva, mas nada que impressionasse. Nada que vencesse a catatonia. Uma tempestade que tinha levado pânico à cidade inteira não tinha interrompido a sucessão compulsiva de canais de TV. Parisienses cabisbaixos varriam as ruas, os cafés com as mesas recolhidas, a cidade em rescaldo. Como sempre, a dor dos outros é a que dói em mim, nunca as minhas, nunca essa que agora me deixa de olhos fixos no nada, inerte, que me empurrou esses dias todos à compulsão do quarto de hotel, do nada. E se eu tivesse dado atenção à chuva, e se eu tivesse feito alguma coisa, e se eu tivesse dado atenção ao que me cerca desde sempre…? Essa labirintite me guiou por Saint André des Arts, deserta. E me senti culpado por tudo.
Perdi não sei o quê, enquanto as calçadas se desarvoravam depois de uma noite de excesso. Tudo tinha desabado. Telhados lá fora, eu aqui dentro. A cidade e suas perdas; eu e meus erros. Se tivesse chorado, não teria chovido. A chuva lá fora verteu as lágrimas aqui de dentro. Pardon, Paris.
O conflito entre como alguém se vê e como os outros o veem é corriqueiro, parte inescapável de como é variada a percepção que se tem do mundo, de si, do Outro. A luta para aproximar as duas percepções deve ser constante. Mas há algo nessa imagem e autoimagem que só uma educação do olhar pode permitir.
Ligue seu olhar-câmera num drone improvável e faça um travelling pelo alto da avenida Paulista. Procure registrar as pessoas pelas calçadas, atravessando a avenida para ir ao MASP, ao Center 3, ao edifício Gazeta, atrasados para a próxima sessão no Belas Artes redivivo. Note um ruído na dinâmica dos fluidos urbanos, dos corpos que se movem para todo lado.
Perceba: alguns desses andares mais parecem com movimentos de remadores em pleno asfalto ou cimento. Esses são os sedestres. Para efeito do seu olhar, nesse momento, as pessoas pela avenida dividem-se entre Pedestres e Sedestres. Pedestres, os que andam a pé. Sedestres, nós outros, os que andamos sobre “cadeiras” (“sedes, is”, em latim).
Ninguém é pedestre fora das calçadas, a não ser, eventualmente, por suas opiniões. Mas assim como há pedestres no mundo das ideias, há quem se resuma a sedestre também fora das calçadas: são aqueles que permitem que as cadeiras de rodas os definam, assim como alguns se definem pelo carro que têm, tênis que usam, bolsa que compraram no JK. Fora das calçadas, e mesmo nelas, o conflito entre autoimagem e a visão do Outro sobre si próprio costuma ser mais complexa e desafiadora.
Quando o conflito se estabelece entre o que somos e o que querem que sejamos, nesse momento impõe-se uma decisão estratégica: ver-se apenas como sedestre ou tornar-se um sediachim.
“Sediachim” é o que enfrenta o mundo com sua cadeira, como faz o espadachim com sua espada, ou o “enxadachim”, de Guimarães Rosa, que enfrenta o mundo com sua enxada. O que se paramenta para a luta faz de sua cadeira o instrumento para afirmar sua diferença e expor as barreiras arquitetônicas, urbanísticas e atitudinais, contra as quais, quixote em seu cavalo de rodas, ergue sua perícia de sediachim.
A identidade de cada um, velha questão, não se resume à profissão, ao gosto musical, à preferência sexual, à condição física ou ao modo como se vai da Consolação ao Paraíso: se de carro, bicicleta ou cadeira de rodas. Ninguém é seu afazer ou seu gosto ou sua condição. Mas assumir personas é necessário para a superação de obstáculos que exijam ação no meio social ou político.
Quando diante da necessidade de afirmar um direito ou de lutar para a construção de um direito, a persona justifica-se. Afirmar que São Paulo – como toda e qualquer outra cidade no mundo – precisa ser pensada e refeita (sim, refeita) tendo em mente as circunstâncias dos sedestres – e as dos cegos, as dos surdos, às daqueles com habilidades mentais diferentes – exige mais do que a elegante postura de remador urbano sobre um incongruente caiaque sobre rodas.
É preciso, portanto, afirmar que toda política urbana deve ser permeada pelo olhar daqueles que rompem o paradigma absurdo do homem médio, essa avis rara.
Essa afirmação exige que o sedestre se transmude em sediachim e grite: Nada sobre nós, sem nós!
E é por isso que, ao passar por um sediachim, na rua que for, no bairro onde estiver, levo a mão esquerda espalmada ao punho direito fechado e curvo-me em reverência. Assim se cumprimentam os artistas marciais.”
Joan Miró. Natureza morta com rosa. 1916. Oil on cardboard. 77 x 74 cm. Coleção particular
Que há num chapéu-mexicano que possa fazer alguém feliz? Não era um chapéu-mexicano, era um outro desses brinquedos de parque de diversões que seguem sendo os mesmos desde o tempo em que o Brasil descobriu os chapéus mexicanos, precisamente em 1970. A coisa girava horizontalmente, era colorida e tinha crianças dentro.
_ Então é um chapéu-mexicano, oras. Se fosse vertical, era roda-gigante.
Ele entendia dessas coisas, parece, mas não entendia Leda.
Fez a curva em frente ao parque de diversões dentro do Parque da Cidade. Uma curva doce como as curvas que faziam os brinquedos sob o sol, manhã, verão e férias. Tirou o pé do acelerador e fez a curva por fora, prolongadamente. Afundou no banco para ver o volante como via quando filho, como fazia quando pegava o volante do carro do pai – ombros encolhidos, sonoplastia com a boca, carrinho de corrida. Matchbox. Deitou o corpo para a esquerda, Fittipaldi. Enquanto passava lento pelo parque, foi se perguntando o que podia fazer alguém feliz, já que ele não conseguia com Leda. Girar, girar, gritar, cores, crianças. Ser criança. Mas ele falava como criança com ela!
_ Não o tempo todo, claro, que eu sou um homem maduro, oras.
Se recompôs num quase salto. Pigarro, segunda marcha. Ajeitou o cabelo, a gravata. Maduro, oras. Faz horas que estou tentando entender o que acontece, o que falta, o que sobra, o que faz essa mulher girar, gritar, ser criança. E nada. Que é que um chapéu-mexicano tem que eu não tenho?
A resposta seria simples, se a questão fosse de engenharia. E ele se perdeu em devaneios técnicos sobre resistência de materiais, força centrípeta, quantidade de movimento, momentum, e momentos se passaram – o parque inteiro passou, e o posto de gasolina passou, e o cartão de crédito não passou, débito por favor. Muito se passou até que, entre considerações irrelevantes sobre que queijo comprar e quando mesmo é que devia pagar a lavadeira, ele se lembrou de que queria era saber como fazer Leda feliz.
_ Foco, ele disse. Como me cansa essa coisa de palavra da moda. Agora, todo mundo fala em foco. Antes era “objetividade” para cuidar da mesma coisa. Nem foco nem objetividade: eu continuo aqui me perguntando a mesma coisa, neurótico.
E começou a cantar a canção que não saía da sua cabeça desde cedo. Demis Roussos, claro, que ele odiava amar e o matava de vergonha. Culpa do festival internacional da canção, tentava explicar. Não tinha jeito. Forever and ever… a música batucava na sua cabeça metódica.
_ É ele, desgraçado!
Tinha certeza, agora. Era ele. Aquela bata balofa, aquela barba imensa, aquela balela sentimental. Pronto. Resolveu destruir o “disco” ainda aquele dia. Demis Roussos, desgraçado!
Identificado o responsável pelo seu fracasso amoroso, começou a fazer uma lista dos motivos para odiar os gregos, mas parou logo depois de repassar as tais críticas fáceis ao platonismo e maldizer o fato de dizerem que ele se parecia com Yanni. Parou por preguiça, na verdade. Odiava acima de tudo ficar repassando o alfabeto inteiro querendo se lembrar de um nome. E quando o assunto exige memória para coisas como Anaximandro e Filocteto, melhor voltar ao chapéu-mexicano.
No caminho de casa, parou no bar do Sudoeste que “os amigos da Leda é que freqüentam, oras”, pensou para si, se defendendo de si mesmo, mas ele não enganava ninguém, nem os seus pensamentos.
_ Alguém que abandone um lugar chamado “Porcão” pra fundar um que se chama Fausto & Manuel definitivamente merece meu respeito. Espero que ela não esteja aqui, nem os amigos dela, que senão vou ter de dar atenção a eles, falar com ela, ela bem que podia estar aqui, eu até que gosto do jeito do André, a não ser pelo futebol, sempre futebol. Onde ela está que não chega?
Sentou, pediu, ficou quieto, remoendo. Remoeu as vontades e os silêncios dela. Remoeu as suas próprias atitudes, as atitudes dos amigos dela. Remoeu sua falta de amigos, que coisa chata isso de dar atenção. Remoeu as suas próprias vontades, suas manias adquiridas, arraigadas. Remoeu. Remoeu até voltar a essa história de que… dar atenção é coisa chata. Parou.
_ Ai.
Perdoou Demis Roussos. Até cantou umas três vezes o refrão. Perdoou muitos e muitas coisas depois de muita, muita tequila, que pediu sem notar por quê. Quando o mundo começou a girar, perdoou a si mesmo. As voltas que o mundo dá.
De algum jeito, se viu em casa e o mundo girava. O mundo girava como um chapéu-mexicano. Sonhou com crianças girando, girando: o mundo girava. Sonhou com uma voz feminina gritando o nome dele, gritando e girando, doce e infantil, ela gritando e girando. Ele sonhou que o mundo girava, forever and ever, nas voltas do seu coração.
A chave da gravidade do caso Covaxin está em quem o revelou, onde, quem foi poupado e quem foi atacado.
Arthur Lira tem mais de centena de pedidos de impeachment em suas mãos. As ruas pediram a queda de Bolsonaro em dois fins-de-semana diferentes, com público crescente. Para Lira, impeachment só anda se for vitória sua. A Covaxin cria o ambiente político para que Lira e seu grupo sejam vencedores.
Luís Miranda foi o primeiro parlamentar do DEM a apoiar a candidatura de Lira contra o candidato de Maia, do mesmo partido. Miranda continua no DEM, do qual Maia foi expulso.
Miranda fez essa revelação na CNN, rede que deu claras evidências de alinhamento com um conservadorismo que tolera a extrema-direita. Mas que critica o governo.
Miranda poupou Pazzuelo, general da ativa, chefe da pasta responsável pela compra da Covaxin, e atacou diretamente o Presidente da República.
Lira agora tem um caso para impeachment vindo do Centrão.
Isto explica a rara coletiva do governo, que correu a se defender, mostrar documentos e usar a bíblia: O sinal da denúncia é de que o Governo teria perdido o apoio do presidente da Câmara. Entregaram Salles em edição extra do DOU, totalmente desnecessária do ponto-de-vista administrativo.
Resumo da ópera: a porta está aberta para um pedido de impeachment vindo do Centrão.
Hoje, um dos carcarás que são meus vizinhos, já são quatro, siava por aqui e notou minha existência na varanda, enquanto eu descansava os olhos nele mesmo, carcará, que ave linda.
Atravessou duas vezes a avenida que corta o condomínio. Na segunda, abriu as asas imensas para reduzir a velocidade e olhar bem pra mim. Olhou, virou a cabeça, olhou, tudo muito rápido. Seguiu, retornou para o poente, foi-se com o sol.
Imaginei o que fazer para ele ficar ao meu lado um pouco. Aqueles silêncios entre predador e presa, os papéis mal-definidos, quem é quem e quem quer o quê. Eu só queria vê-lo de perto. Altivo, forte, o rostro carrancudo, formidável. E se ele tivesse pousado na minha mão? No meu braço? As garras são grandes e afiadas, maiores do que a minha mão. Teriam me machucado. Poderia ter bicado meu rosto, meus olhos. Poderia ter aceitado um afago. Bicado a outra mão, se achasse que fui longe demais no cafuné pelas asas. Dado uns pulos em volta de mim no sofá redondo da varanda. Estranhado a cadeira preta em meio ao claro da outros móveis. Poderia ter bicado o pneu da cadeira, e isso sim seria uma chateação.
Queria era que ele tivesse pousado aqui. Que se sentisse à vontade do meu lado. Se me atacasse, também teria gostado. Assim, teria uma história para contar, não um flerte.