Down and Out in Paris and London

Anotação encontrada num diário abandonado

24 de Dezembro de 1999

São onze horas da noite, sei que chove lá fora, mas é só o que sei. Passeio pelos canais de televisão, nada me prende. Minha cabeça está em ziguezague, desnorteada, um labirinto em mar alto, uma tormenta aqui dentro. C. disse que não vem. Por e-mail. Disse que tinha voltado para o noivo (um recado para eu não insistir), e que a história de nos casarmos em Praga era – não lembro bem o que ela disse. Minha mente vagueia, sem ordem, sem rumo. Saí de Londres, e vim para Paris – esse refúgio da indiferença de Covent Garden, onde tudo é encantador, até as pessoas são encantadoras, só não se aproxime. Vim para Paris, e estou despejado sobre a cama, hotel Crystal. Chove lá fora, e assisto televisão. Não, passeio desatento pelos canais. Andrea Bocelli canta em Notre Dame. É véspera de natal, e ele canta a alguns quarteirões de mim. Estou na rue de Saint Benoît, a cem passos de Le Bilboquet, que Eros me apresentou em 96. Um refúgio ao som de jazz, onde me diverte o fascínio do jazz sobre os franceses. Um refúgio. Controle remoto na mão, toco as teclas compulsivamente. Tocatta e fuga em dor maior. Dor seca, que não vem pra fora. Catatonia. Notre Dame de novo, Bocelli ainda canta. Mas não vou até lá. Hoje é véspera de Natal, faria sentido. Se eu fosse um turista. Está chovendo, e C. me deixou. Por e-mail. Era para estarmos nesta mesma Paris hoje. Daqui, para Praga. Em Praga, na Catedral de São Vito, trocaríamos alianças, só nós, e começaríamos o quê, mesmo? Ela estava certa. Vim para Londres passar um ano de reflexão e cosmopolitismo. Até agora, solidão pela primeira vez, e a violência do individualismo utilitarista que é a alma britânica. Se isto é o grande mundo, eu quero descer. Quero … não sei o que quero. Minha mão não pára de correr os canais de TV. Aí está Bocelli mais uma vez. A voz quente não me comove, só constato a beleza da coisa, a nave portentosa, os vitrais, a pompa… mas eu sou eu e as minhas circunstâncias. Nada me comove. Estado de choque. Um e-mail recebido às quatro da manhã. Naquela noite, levantei da cama em High Holborn para checar se havia mensagem. Como um presságio. Senti como se o chão tivesse, lá vai lugar comum…, mas o diabo é que esse lugar comum é tão verdadeiro…, pronto, vou dizer: fiquei sem chão. O chão se moveu, mesmo. Pensei que ia cair. Que é isso? Onde estou? Que está acontecendo? E tudo o que acontecia era uma mensagem eletrônica vinda do Brasil, e que me informava de que eu estava mesmo sozinho, e que aquela história de casamento já era. Agora estou em Paris. Peguei o Eurostar, e vim – sem pensar, sem sentir. Estou catatônico. Não sinto nada. Não sei o que estou fazendo, nem para onde vou ou para onde ir. Sozinho. Nunca a solidão me incomodara. Sempre me bastei. Concluí que era horrível me bastar, e que era preciso entregar-me a alguém. Me entreguei. E ela me enviou um e-mail de madrugada, dois dias antes de embarcar. Nem um telefonema. Fez bem. Teria sido um erro, mesmo. Não havia futuro, não havia história, não havia estofo, havia romantismo e aventura, sem as bases para construir uma vida a dois. Só havia a vaidade de ambos, de ter encontrado algo bonito de se viver. Uma aventura entre Paris e Praga, as duas mais belas capitais do mundo, celebrações do gênio do homem ao longo dos séculos. A Praga que encantou meu pai, sua história com Lida – Ludmila – a motorneira, a quem ele nunca mais viu. O fascínio das histórias dele, meu pai, na Cortina de Ferro, quando líder estudantil e comunista. Fazer amor no Vltava. Ele fez, com Lida. Antes de Laura, antes de minha mãe. C. era minha Lida ou minha Laura? Nenhuma delas. Nem eu sou meu pai. Sou um corpo jogado sobre a cama que aperta botões compulsivamente. É véspera de Natal. É meia-noite. Ligo para minha mãe. Feliz Natal. Ela está preocupada comigo. Bocelli ainda canta. E eu não durmo. Não dormirei até a catatonia ser derrotada.

25 de Dezembro de 1999

Acordei, desci à uma da tarde. Perguntei ao concierge se havia algum marché au puces aberto. Ele disse que não, cheio de uma certeza estranha. Perguntei se por causa do Natal. Ele disse que por causa da chuva que caíra durante a noite. A maior tempestade que a França já tinha visto. Ele não soou muito científico. Mas emendou: O Bois de Boulogne, devastado; as árvores ao longo do Sena, no chão. Saí por Saint-Germain des Prés em direção aos bouquinistes, e o que vi foi destruição. Desviei de galhos, entulho. Como não tinha percebido a gravidade da chuva? A janela do quarto era muito pequena, ficava no alto ou parecia estar no alto, vista daquele eterno plano horizontal da cama. Tinha visto clarões por ela, ouvido a chuva, mas nada que impressionasse. Nada que vencesse a catatonia. Uma tempestade que tinha levado pânico à cidade inteira não tinha interrompido a sucessão compulsiva de canais de TV. Parisienses cabisbaixos varriam as ruas, os cafés com as mesas recolhidas, a cidade em rescaldo. Como sempre, a dor dos outros é a que dói em mim, nunca as minhas, nunca essa que agora me deixa de olhos fixos no nada, inerte, que me empurrou esses dias todos à compulsão do quarto de hotel, do nada. E se eu tivesse dado atenção à chuva, e se eu tivesse feito alguma coisa, e se eu tivesse dado atenção ao que me cerca desde sempre…? Essa labirintite me guiou por Saint André des Arts, deserta. E me senti culpado por tudo.

Perdi não sei o quê, enquanto as calçadas se desarvoravam depois de uma noite de excesso. Tudo tinha desabado. Telhados lá fora, eu aqui dentro. A cidade e suas perdas; eu e meus erros. Se tivesse chorado, não teria chovido. A chuva lá fora verteu as lágrimas aqui de dentro. Pardon, Paris.

A Roseira e a Roda

Joan Miró. Natureza morta com rosa. 1916.
Oil on cardboard. 77 x 74 cm. Coleção particular

Que há num chapéu-mexicano que possa fazer alguém feliz? Não era um chapéu-mexicano, era um outro desses brinquedos de parque de diversões que seguem sendo os mesmos desde o tempo em que o Brasil descobriu os chapéus mexicanos, precisamente em 1970. A coisa girava horizontalmente, era colorida e tinha crianças dentro.

_ Então é um chapéu-mexicano, oras. Se fosse vertical, era roda-gigante.

Ele entendia dessas coisas, parece, mas não entendia Leda.

Fez a curva em frente ao parque de diversões dentro do Parque da Cidade. Uma curva doce como as curvas que faziam os brinquedos sob o sol, manhã, verão e férias. Tirou o pé do acelerador e fez a curva por fora, prolongadamente. Afundou no banco para ver o volante como via quando filho, como fazia quando pegava o volante do carro do pai – ombros encolhidos, sonoplastia com a boca, carrinho de corrida. Matchbox. Deitou o corpo para a esquerda, Fittipaldi. Enquanto passava lento pelo parque, foi se perguntando o que podia fazer alguém feliz, já que ele não conseguia com Leda. Girar, girar, gritar, cores, crianças. Ser criança. Mas ele falava como criança com ela!

_ Não o tempo todo, claro, que eu sou um homem maduro, oras.

Se recompôs num quase salto. Pigarro, segunda marcha. Ajeitou o cabelo, a gravata. Maduro, oras. Faz horas que estou tentando entender o que acontece, o que falta, o que sobra, o que faz essa mulher girar, gritar, ser criança. E nada. Que é que um chapéu-mexicano tem que eu não tenho?

A resposta seria simples, se a questão fosse de engenharia. E ele se perdeu em devaneios técnicos sobre resistência de materiais, força centrípeta, quantidade de movimento, momentum, e momentos se passaram – o parque inteiro passou, e o posto de gasolina passou, e o cartão de crédito não passou, débito por favor. Muito se passou até que, entre considerações irrelevantes sobre que queijo comprar e quando mesmo é que devia pagar a lavadeira, ele se lembrou de que queria era saber como fazer Leda feliz.

_ Foco, ele disse. Como me cansa essa coisa de palavra da moda. Agora, todo mundo fala em foco. Antes era “objetividade” para cuidar da mesma coisa. Nem foco nem objetividade: eu continuo aqui me perguntando a mesma coisa, neurótico.

E começou a cantar a canção que não saía da sua cabeça desde cedo. Demis Roussos, claro, que ele odiava amar e o matava de vergonha. Culpa do festival internacional da canção, tentava explicar. Não tinha jeito. Forever and ever… a música batucava na sua cabeça metódica.

_ É ele, desgraçado!

Tinha certeza, agora. Era ele. Aquela bata balofa, aquela barba imensa, aquela balela sentimental. Pronto. Resolveu destruir o “disco” ainda aquele dia. Demis Roussos, desgraçado!

Identificado o responsável pelo seu fracasso amoroso, começou a fazer uma lista dos motivos para odiar os gregos, mas parou logo depois de repassar as tais críticas fáceis ao platonismo e maldizer o fato de dizerem que ele se parecia com Yanni. Parou por preguiça, na verdade. Odiava acima de tudo ficar repassando o alfabeto inteiro querendo se lembrar de um nome. E quando o assunto exige memória para coisas como Anaximandro e Filocteto, melhor voltar ao chapéu-mexicano.

No caminho de casa, parou no bar do Sudoeste que “os amigos da Leda é que freqüentam, oras”, pensou para si, se defendendo de si mesmo, mas ele não enganava ninguém, nem os seus pensamentos.

_ Alguém que abandone um lugar chamado “Porcão” pra fundar um que se chama Fausto & Manuel definitivamente merece meu respeito. Espero que ela não esteja aqui, nem os amigos dela, que senão vou ter de dar atenção a eles, falar com ela, ela bem que podia estar aqui, eu até que gosto do jeito do André, a não ser pelo futebol, sempre futebol. Onde ela está que não chega?

Sentou, pediu, ficou quieto, remoendo. Remoeu as vontades e os silêncios dela. Remoeu as suas próprias atitudes, as atitudes dos amigos dela. Remoeu sua falta de amigos, que coisa chata isso de dar atenção. Remoeu as suas próprias vontades, suas manias adquiridas, arraigadas. Remoeu. Remoeu até voltar a essa história de que… dar atenção é coisa chata. Parou.

_ Ai.

Perdoou Demis Roussos. Até cantou umas três vezes o refrão. Perdoou muitos e muitas coisas depois de muita, muita tequila, que pediu sem notar por quê. Quando o mundo começou a girar, perdoou a si mesmo. As voltas que o mundo dá.

De algum jeito, se viu em casa e o mundo girava. O mundo girava como um chapéu-mexicano. Sonhou com crianças girando, girando: o mundo girava. Sonhou com uma voz feminina gritando o nome dele, gritando e girando, doce e infantil, ela gritando e girando. Ele sonhou que o mundo girava, forever and ever, nas voltas do seu coração.

O Feminino e o Mito

ilustração de Gabriel Jarnier para a capa de Fodder on my Wings, album de Nina Simone, 1982

Os homens estão em farrapos, rastejam na lama, armas ao chão. A nação está derrotada. Todos com pavor de quem assumirá o poder após uma vitória manchada de sangue e ódio. Homens e mulheres de bem fogem para o exterior. “A agonia da espera faz que desejem a chegada do inimigo”. Surge a carruagem.

Estamos em 1871, na cena de abertura da novela “Bola de Sebo”, de Guy de Maupassant. O exército da França foi derrotado; os soldados da Prússia invadem o país. “Bola de Sebo” é uma prostituta decadente, corpulenta. Ela entra na carruagem lotada de personagens da alta classe. Todos na mesma situação, e nada diminui o desprezo que sentem por ela. Partem. Ao anoitecer, param numa estalagem, que descobrem estar tomada por soldados prussianos. São presos e humilhados. O comandante se encanta com “Bola de Sebo”, que imediatamente o odeia, para surpresa geral. Indignado, ele afirma que todos morrerão caso ela não durma com ele aquela noite. Os homens e mulheres de bem passam a implorar sua ajuda. Ela lhes dá um voto de confiança e se entrega, a contragosto, ao oficial. Salva os que a menosprezavam. E volta a ser tratada com o nojo de sempre logo que os homens e mulheres de bem se veem livres do perigo.

Outra mulher negligenciada foi criada por Bertolt Brecht e Kurt Weil no fim da década de 1920: Jenny Pirata (“Seeräuber Jenny”), uma faxineira de hotel barato em Londres revoltada pelo modo como é tratada pelos hóspedes. Jenny sonha ser a líder de piratas que invadirão a cidade num navio negro, e matarão todos a mando dela. Brecht inspirou-se na ladra irlandesa Jenny Diver, que roubava na Londres do século 18. “Jenny Pirata” surge como canção na Ópera dos Três Vinténs e é interpretada pela personagem Polly Peachum, namorada e filha de ladrão.

Na Ópera do Malandro, Chico Buarque compõe uma personagem inspirada na Bola de Sebo de Maupassant, na faxineira pirata de Brecht e em Madame Satã, lendário travesti carioca. Chico transforma a estalagem do Maupassant num Zepelim. Os canhões libertadores do navio pirata de Brecht tornam-se os opressores do Zepelim. A compassiva prostituta de Maupassant e a revoltosa faxineira de Brecht misturam-se no oprimido, libertário, humilhado e violento Genival, vulgo Geni — boa de apanhar, boa de cuspir.

Quando Nina Simone interpreta a sua Pirate Jenny, ela usa a faxineira de Brecht, mas a coloca num hotel do Sul dos Estados Unidos. O Sul da segregação racial. Essa quarta Jenny sonha com canhões assestados contra os racistas da cidade. O modo como Nina encerra a canção é um assombro poderoso, um susto na plateia que, num ataque violento ao piano acompanhado de uma ordem-grito, sente-se executada em público.

Nina podia ser tão explosiva que o dono de um bar no Village em Nova York, onde cantava, decidiu contratar seguranças para defender os clientes dos ataques dela. Seus ataques eram físicos e musicais. Não era confortável ser branco na plateia desse ícone dos direitos dos negros. Em “Four Women”, que compôs em 1966, Nina retrata quatro negras conforme os estereótipos da segregada sociedade que combatia. A primeira é Aunt Sarah, negra velha do costado forte de quem aguentou muito castigo e dor na vida. Depois vem Sephronia, a mestiça perdida entre dois mundos, filha do estupro da mãe negra pelo pai branco e rico. A terceira é Sweet Thing, a morena queimada de sol, a bela prostituta que se aproveita dos clientes. Ao final, surge Peaches, de pele marrom e atitude desafiadora, que não se submete ao papel da mulher tradicional (“I’ll kill the first mother I see”).

O labirinto de mulheres violentadas somado à vertigem da cena da derrota de uma nação pela violência, simbólica ou não, das armas, serve para rascunhar o ambiente que se vive atualmente no Brasil de antes das eleições de 2018.

As mulheres são agora a maioria dos eleitores e podem definir o vencedor. Há 100 anos, entretanto, Celina Guimarães Viana era a primeira mulher brasileira a votar numa eleição. A então Lei Eleitoral do Estado do Rio Grande do Norte dispunha inovadoramente que o direito ao voto seria exercido sem distinção de sexo.

“Ao destino lhe agradam as repetições, as variantes, as simetrias”, disse Borges. Numa ironia que pode vir a ser trágica, o artigo da lei que permitiu que Celina votasse foi o 17.

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Caio Leonardo Bessa Rodrigues – @caioleonardobr – publicado em 26 de setembro de 2018, no Blog da Ema.

As Cidades e o Invisível

Somente nos relatos de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidos dos cupins
Italo Calvino,  As Cidades Invisíveis
Que cidade é esta em que tantos vivem,
mas que só você vive,
que só você vê?
É sua a cidade dos que olham para cima?
É sua a cidade dos que olham para o chão,
para as calçadas,
para os degraus?
Ou a sua cidade é a dos que não olham, dos que não vêem?
É sua a cidade em que a barriga pesa até libertar uma nova vida,
ou aquela em que não se pode falar em barriga?
Conte como é a cidade dos que se doem de amor
e a das para quem o ato de amar dói.
Deixe que saibam da cidade dos que ouvem outros sons
e da dos que não ouvem som algum.
Da dos que tocam sons que não se ouve
e a dos que não emitem sons.
Como é a sua cidade, se sua cidade é sua cor?
Como é a cidade
cor de sangue
cor de rosa
estilete e neon
Como é viver na cidade às portas do reino humano de Azeroth?
Venha revelar o território demarcado pelas bandeiras belicosas da bola
Mostre o mapa tatuado na sua carne
Trace as entranhas urbanas
do seu mundo sobre duas rodas
Ou talvez seu domínio tenha duas mais
Ou sua cidade sejam muitas, costuradas por seis, oito, quantos eixos?
Sua cidade é o baixo?
Sua cidade é a zona?
Sua cidade é a vila?
Sua cidade é um império que sacode os quadris, imperatriz?
O viaduto sobre a sua cabeça:
diz de viver sob ele
Vem, homem da cidade-beco,
Aprochegue-se mulher que dorme sobre o meio-fio da via expressa
 que nem mais levanta os olhos
que nem mais tem o reflexo
de se defender da freada
da buzina
da batida
do seu nada
conte o que ainda vê
fale do que ainda importa
talvez uma margarida
talvez uma presilha
talvez o ato de esquecer: o que só você saberá
Que foi feito da Cidade Náutica?
Como é nadar na Cidade Ocian?
Que resta da Cellula-Mater da Nacionalidade?
Sua cidade é uma represa
ou uma represa a sua cidade?
Fale da secreta cidade das casas ornadas de ciprestes
Segrede as falas inauditas que correm entre os últimos ciprestes
Entoe a revelação da cidade dos homens de deus
Defenda a cidadela dos homens sem deus
Quantas cidades há num prédio de apartamentos?
Quantas cidades há num desentendimento?
Quem cantará o apagar da luz cinérea
que desenhava a Cidade-Estado do Edifício São Vito?
Aproveite e fale da Cidade da Eterna Primavera,
(o Mercado Municipal)
E você outro, desguarde as confidências daquele entorno
terra de Fagins e ratazanas do terceiro pecado.
É preciso
Sempre é preciso uma pausa
sem a qual não se perceberá
a cidade
encoberta pelo olhar viciado do quotidiano,
a cidade atrás do biombo fosco da indiferença
a cidade apenas tímida,
hipodérmica
recôndita:

a cidade invisível.

Caio Leonardo 2004/2017

(Texto originalmente concebido em 2004, como apresentação de uma comunidade do Orkut, rede social abandonada como um bairro que a especulação imobiliária mandou esquecer)

Tráfico Aéreo

Em meio à alta do dólar e as muitas crises em andamento, dois homens de negócio brasileiros encontram-se por acaso em algum aeroporto pelo mundo:

_ Fica muito tempo por aqui?

_ Não, só de passagem.

_ Foi extraditado para onde?

_ Suíça. E Você?

_ Ah, vou ficar por aqui, mesmo.

_ Quantos anos?

_ Estou chegando. Audiência amanhã. Você?

_ 5 anos mais US$ 50 milhões de multa.

_ Tive que devolver US$ 180mi. Dá um dó, rapaz.

_ Nem me fale. Tempos horríveis. Não se tem sossego.

_ Sossego nenhum. Sua mulher vai bem?

_ Vai comigo. Minha filha, também.A gente vai se ver pouco, mas é bom saber que a família continua junto. Três anos cada uma. Pouquinho. Melhora o inglês, se for ver.

_ Melhor assim, né. Minha filha vai continuar em Harvard, encaixa doutorado com o mestrado. Vamos ficar livres quase ao mesmo tempo.

_ E a sua mulher?

_ Essa já não é mais minha, por assim dizer. Preferimos delação premiada. Vai ficar só dois anos, mas na Itália. Domiciliar. Lago di Como. Namorado novo é deputado da turma do Berlusconi. Alguém precisava cuidar do patrimônio. Ela ganhou no cara ou coroa, se bem que eu acho que ela me engambelou com aquela moeda de 1 euro.

_ Nada! Foco no negócio. Arranjo bom, esse. Aumentou muito a sua pena?

_ Ainda vou saber, mas daqueles US$ 180 mi, cento e poucos foram por conta da língua solta dela. Era pra ser como Você, uns cinquenta, tava bom demais.

_ E o resto?

_ Ah, isso está por aí, pelas nuvens. Nuvem por nuvem, melhor esperar a tempestade passar.

_ Melhor, sim. Investiu em quê?

_ Em título do tesouro, oras. Não dá pra confiar na Petrobras.

_ Até que dava, enquanto durou. Fora do Brasil a remuneração do capital é uma piada.

_ Uma piada!

_ Essa crise ainda vai longe, e os juros ainda mais longe!

_ Que seja eterna enquanto dure!

_ Salve, poetinha!

_ Saravá, compadre. Essa tua tornozeleira é daqui?

_ Não, é Suíça. 30cm de margem de erro, só. Nem dava pra buscar o jornal na soleira da porta em Saint Barths.

_ A minha machuca pra danar. Mas chegando à cela acaba esse martírio. 

_ As daqui são boas?

_ Primeiro mundo. As de lá? 

_ Ainda não sei, mas boas mesmo são as da Dinamarca. 

_ Primeiro mundo. 

_ Primeiro mundo. Vamos lá, que a escolta já se levantou.

_ Pensamento positivo! Continue esse sucesso de sempre!

_ Nós todos, meu caro. Nós todos!

_ Deus te abençoe!

_ Deus no comando!!

_ Boa estada!

_ Boa viagem!

Caio Leonardo

3 de novembro de 2015

Rosa, a mais bela flor do Lácio

Guimarães Rosa é o maior escritor de todos os tempos. Eis aí um jeito antipático de começar uma conversa.

Falava-se espanhol com diferentes procedências e qualidades em mais uma mesa composta pelo Ministro Conselheiro Devoto. Era improvável que todos estivessem se entendendo, então aproveitei para fazer umas afirmações vindas daquilo que brotava da terceira taça de vinho depois do espumante de boas-vindas. Vinho acaba rápido com meu discernimento.

rosa com vaqueiros

Naquela noite, éramos bolivianos, canadenses, venezuelanos, argentinos e brasileiros, todos ingredientes do jantar comandado pelo mais célebre Ministro Conselheiro que a terra de Borges y Bioy-Casares já produziu. Fomos todos imersos na casa de pouca luz,  lugar onde sempre me sentia num dos jantares aéreos de Santos Dumont,  servidos lá em cima, no alto do quinto lance de escadas escherianas por suas diagonais vertiginosas, marca da arquitetura da mansão escondida em meio às florestas do Lago Sul, erguida em madeira de lei, ornada de vidro, verde e pássaros da noite.

O espanto, porque é de espanto que se trata, o espanto com a obra de Rosa foi o que, por algum efeito colateral, quis passar à majestática Sra. Paz-Estenssoro, ao terrível Ivan Godoy e à monumental Gabriela Rosso, os ouvidos mais próximos.

Rosa é único, este foi o ponto de partida. Ele inventou uma língua, cuja base é o português falado no sertão de Minas e de Goiás, mas esse português foi desconstruído e desarranjado por meio de recursos a experiências gramaticais, semânticas e fonéticas que Rosa ia buscar na dúzia de idiomas que conhecia, mal ou bem. Isto é o que se diz sempre que se fala dele, nenhuma novidade.

Mas… o que diferencia Rosa de Faulkner? (Neste momento, os três deviam ter-se voltado para o outro lado da mesa, em fuga, mas não…) Faulkner também foi buscar um falar de gente do interior para construir tramas complexas e oferecer personagens de alta densidade dramática, mesmo que num conto. Mas Faulkner recorria à mímese, à imitação. Rosa não imita: ele esconde na sua linguagem uma complexidade de composição inigualada, que no entanto ainda soa como o falar de gente simples. Se Rosa não imita, imito eu o Rosa, nessa canção de boiadeiro sussurrada em curva de rio, desmargem que se encordeia verdejar adentro, ponto de descanso aos cafuis, que no sertão é outro o nome das horas,  e na boca da noite os olhos areiam venosos, na antecipação do muito cedo que é o acordar no descampado, no quebrar da barra, rosto ornado de orvalho lagriluminoso.

Quando se pensa em complexidade e literatura, Joyce é inevitável. Joyce também reinventou o inglês – e inventou complexas estruturas narrativas, com o que Rosa também gostava de brincar, basta ver o que fez em Sagarana, mais especificamente em Matraga e todas as suas referências clássicas escondidas atrás de uma folha, de uma vela, do que ele quisesse. Mas Joyce tramou contra o inglês convencional por cima, enquanto Rosa conspirou por baixo a favor do português. Joyce é abertamente culto e sofisticado. Rosa é o baú rústico em que se esconde o Aleph.

Rosa não é linear, Joyce até que é, ao menos no Ulysses, já que é uma trama contra o tempo, incrustada nas mais famosas 24 horas deitadas em livro. A descontinuidade vertiginosa parece ter surgido com Lawrence Sterne, que está em Joyce, no Machado de Memórias Póstumas, e também em Rosa, no mínimo por sua inapetência pelo corriqueiro, pelo formal, pelo burocrático – e por Belenos!, esse homem era um diplomata…

De onde é que Rosa foi tirar coragem para falar de povo e como povo, com o intento de fazer grande literatura e não literatura regional? Rabelais terá sido o primeiro autor a retratar o povo, o imaginário do povo, as coisas da plebe. Mas retratou isso com uma linguagem rebuscada e fiel ao que via. Rosa não tem linguagem rebuscada, muito menos era fiel ao que via: a experiência roseana é lisérgica, mais que sinestésica.

Depois do Porto Ruby, eu já era valente o quanto seja preciso para sustentar que Rosa é maior que Rabelais, Sterne, Joyce e Faulkner, e só me circundava, me perseguia o medo de que alguma alma sensata e estraga-prazeres viesse podar meu roseiral de ufanidades, jogando o Bardo sobre a mesa como quem grita Truco! Mas eram todos, obviamente menos eu, diplomatas, então Shakespeare não veio em socorro da hierarquia das letras, e passamos, ladies first e belo jantar, para o café curto com lascas de chocolate.

A Argentina abandonou o Brasil quando enviou Guillermo Devoto à China. Sua ida pôs fim àquela secreta filial do Tortoni e deixou a muitos sem ter onde recusar um mau charuto com o apoio auto-irônico do anfitrião.

Caio Leonardo
18.10.2008