O Feminino e o Mito

ilustração de Gabriel Jarnier para a capa de Fodder on my Wings, album de Nina Simone, 1982

Os homens estão em farrapos, rastejam na lama, armas ao chão. A nação está derrotada. Todos com pavor de quem assumirá o poder após uma vitória manchada de sangue e ódio. Homens e mulheres de bem fogem para o exterior. “A agonia da espera faz que desejem a chegada do inimigo”. Surge a carruagem.

Estamos em 1871, na cena de abertura da novela “Bola de Sebo”, de Guy de Maupassant. O exército da França foi derrotado; os soldados da Prússia invadem o país. “Bola de Sebo” é uma prostituta decadente, corpulenta. Ela entra na carruagem lotada de personagens da alta classe. Todos na mesma situação, e nada diminui o desprezo que sentem por ela. Partem. Ao anoitecer, param numa estalagem, que descobrem estar tomada por soldados prussianos. São presos e humilhados. O comandante se encanta com “Bola de Sebo”, que imediatamente o odeia, para surpresa geral. Indignado, ele afirma que todos morrerão caso ela não durma com ele aquela noite. Os homens e mulheres de bem passam a implorar sua ajuda. Ela lhes dá um voto de confiança e se entrega, a contragosto, ao oficial. Salva os que a menosprezavam. E volta a ser tratada com o nojo de sempre logo que os homens e mulheres de bem se veem livres do perigo.

Outra mulher negligenciada foi criada por Bertolt Brecht e Kurt Weil no fim da década de 1920: Jenny Pirata (“Seeräuber Jenny”), uma faxineira de hotel barato em Londres revoltada pelo modo como é tratada pelos hóspedes. Jenny sonha ser a líder de piratas que invadirão a cidade num navio negro, e matarão todos a mando dela. Brecht inspirou-se na ladra irlandesa Jenny Diver, que roubava na Londres do século 18. “Jenny Pirata” surge como canção na Ópera dos Três Vinténs e é interpretada pela personagem Polly Peachum, namorada e filha de ladrão.

Na Ópera do Malandro, Chico Buarque compõe uma personagem inspirada na Bola de Sebo de Maupassant, na faxineira pirata de Brecht e em Madame Satã, lendário travesti carioca. Chico transforma a estalagem do Maupassant num Zepelim. Os canhões libertadores do navio pirata de Brecht tornam-se os opressores do Zepelim. A compassiva prostituta de Maupassant e a revoltosa faxineira de Brecht misturam-se no oprimido, libertário, humilhado e violento Genival, vulgo Geni — boa de apanhar, boa de cuspir.

Quando Nina Simone interpreta a sua Pirate Jenny, ela usa a faxineira de Brecht, mas a coloca num hotel do Sul dos Estados Unidos. O Sul da segregação racial. Essa quarta Jenny sonha com canhões assestados contra os racistas da cidade. O modo como Nina encerra a canção é um assombro poderoso, um susto na plateia que, num ataque violento ao piano acompanhado de uma ordem-grito, sente-se executada em público.

Nina podia ser tão explosiva que o dono de um bar no Village em Nova York, onde cantava, decidiu contratar seguranças para defender os clientes dos ataques dela. Seus ataques eram físicos e musicais. Não era confortável ser branco na plateia desse ícone dos direitos dos negros. Em “Four Women”, que compôs em 1966, Nina retrata quatro negras conforme os estereótipos da segregada sociedade que combatia. A primeira é Aunt Sarah, negra velha do costado forte de quem aguentou muito castigo e dor na vida. Depois vem Sephronia, a mestiça perdida entre dois mundos, filha do estupro da mãe negra pelo pai branco e rico. A terceira é Sweet Thing, a morena queimada de sol, a bela prostituta que se aproveita dos clientes. Ao final, surge Peaches, de pele marrom e atitude desafiadora, que não se submete ao papel da mulher tradicional (“I’ll kill the first mother I see”).

O labirinto de mulheres violentadas somado à vertigem da cena da derrota de uma nação pela violência, simbólica ou não, das armas, serve para rascunhar o ambiente que se vive atualmente no Brasil de antes das eleições de 2018.

As mulheres são agora a maioria dos eleitores e podem definir o vencedor. Há 100 anos, entretanto, Celina Guimarães Viana era a primeira mulher brasileira a votar numa eleição. A então Lei Eleitoral do Estado do Rio Grande do Norte dispunha inovadoramente que o direito ao voto seria exercido sem distinção de sexo.

“Ao destino lhe agradam as repetições, as variantes, as simetrias”, disse Borges. Numa ironia que pode vir a ser trágica, o artigo da lei que permitiu que Celina votasse foi o 17.

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Caio Leonardo Bessa Rodrigues – @caioleonardobr – publicado em 26 de setembro de 2018, no Blog da Ema.

Uma Geração Perdida Assume o Comando

A geração que nasceu entre os anos 1960 e 1970 chegou ao poder. É a turma que está na casa entre os 40 e 60 anos. São os filhos da revolução sexual: a pílula anticoncepcional, que chegou ao mercado precisamente em 1960, abriu o caminho para o amor livre e o sexo antes do casamento, tornou velho o plano de nascer, crescer, casar, ter filhos e morrer. As regras do relacionamento a dois foram sendo abandonadas. Não havia mais regras. Valia tudo.

Mas essa geração era criança nessa época. Alcançou a adolescência nos anos 1980. E foi nessa época que a liberdade sexual sofreu a contrarrevolução da AIDS. A liberdade sexual a partir de então era risco de morte, mas o casamento, as regras da vida a dois já não valiam mais. Namorar, casar era coisa muito antiga. Sem saber o que fazer, porque não havia um caminho predefinido como antigamente, tudo passava a exigir negociação. A busca do prazer pregada na década anterior começava a dar medo, e querer uma relação a dois dava mais medo ainda, porque a fórmula havia sido perdida, jogada fora.

No meio dos anos 1990, veio a revolução tecnológica. Com a internet, a rua entrou em casa. A casa deixou de ser “o asilo inviolável do indivíduo”, as salas de bate-papo derrubaram muros e as últimas convenções. Práticas sexuais antes secretas passaram a ser de conhecimento comum. As possibilidades de relacionamento sexual ganharam novos, perturbadores horizontes. Essa geração perdeu o rumo e as referências. Se a revolução sexual dos anos ´60 tinha sido um movimento social com um pensamento crítico a embasá-la, a revolução tecnológica abriu as portas da percepção sem qualquer reflexão. Informação demais, possibilidades demais, regra nenhuma. Diante da tela do computador estava um indivíduo que podia tudo e não compreendia nada do impacto desse poder sobre sua existência.

Essa geração foi educada no auge da ditadura e começou sua vida profissional nos anos da hiperinflação, quando era impossível planejar o dia seguinte. Viveu a transição do fim da Guerra Fria e a velocidade, o impacto, a intensidade e a extensão das novas relações comerciais, políticas e sociais sob o signo da globalização. Assistiu a meros doze anos de crescimento neste século. Fez tudo ruir estrondosamente.

Anthony Giddens disse: “Somos a primeira geração após o fim da natureza.” Também a mais solitária e, no Brasil, a mais historicamente inconsequente. Segure-se, pois é ela, agora, quem manda.

Caio Leonardo

(Texto anteriormente publicado no jornal Bom Dia. Revisto e alterado)

A Musa Impassível

“A Musa Impassível”, Victor Brecheret, 1923 – Pinacoteca do Estado de São Paulo

 

Quando Eldorado ainda era Xiririca, surgiu Francisca Júlia. Em 1891, ela ganhou São Paulo aos 20 anos, como poetisa e crítica literária. Fez sucesso antes mesmo de seu primeiro livro ser publicado. No Brasil do século 19, obviamente não haveria de ser fácil uma mulher firmar-se como poeta. Como era Brasil, as dificuldades que ela enfrentou precisavam conter, em algum ponto, uma dose qualquer de histrionismo: Dois escritores de renome se esbofetearam na imprensa sem saberem que por causa dela. João Ribeiro assinou como Maria Azevedo um ataque a Raimundo Correia, que ele achou que usasse “Francisca Júlia” como pseudônimo.

Nem passou pela pena do poeta que a pena de uma poetisa pudesse aquilo tudo.

Francisca Júlia foi grande, foi intensa, misteriosa, melancólica, foi parnasiana, foi simbolista e, se não chegou a ser modernista, os modernistas a achavam grande.

A crítica literária parece ser unânime quanto à altura que ela alcançou como parnasiana – seus contemporâneos a incensavam. Suas rimas internas são cristais em que o leitor tropeça surpreso no caminho, e seus enjambements são desfiladeiros curvos que o levarão vertiginosamente ao reverso do verso seguinte.

Sua abertura ao simbolismo, no entanto, marcou a entrada do esotérico em sua vida. E foi doloroso.

Com 35 anos, deixou de escrever e de frequentar as rodas literárias, o misticismo foi tomando espaço no seu pensamento. (Arrisco imaginar, da distância imensa que há entre mim e o que foi a sua vida, que o desapego pregado pelo budismo possa ter tido algum papel nesse seu recolhimento). Não foi uma vida tranquila, intelectual e espiritualmente, a que decidiu ter. Mudou-se para o interior, foi morar com a mãe, deu aulas, cuidou da casa. E com a mãe voltou a São Paulo em 1908 e, lá, um ano depois, casou-se com um poema.

Ah, se não é um poema o tanto que há de sublime em alguém se apaixonar pelo telegrafista da estação do Lajeado, na Estrada de Ferro da Central do Brasil; ele, um senhor de 45 anos que atendia por Philadelpho Edmundo –  ou, talvez, por Sr. Munster, sobrenome que causa a saborosa dúvida de ter ele sido anglo ou saxão. Imaginar como a poetisa encontrou essa personagem seria insondável, se não se soubesse que a mãe dela havia sido transferida para a escola que ficava na tal estação do Lajeado, a atual Guaianazes.

Francisca Júlia afastou-se dos poetas, mas se casou como poeta e morreu poeticamente, horas depois do marido, por overdose de calmantes.

Acorda!
que o cortejo dos amores trágicos
não cessa

O enterro de Francisca Julia e Philadelpho tornou-se um acontecimento nos meios literários, já acossados pelos modernistas. Era 1920. A história registra a presença de Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti…

Três anos depois, estava pronta a homenagem dos modernistas à parnasiana: uma escultura de Victor Brecheret, em mármore, que levava o nome de um poema dela, A Musa Impassível. “Mármores” é o nome do seu primeiro livro, que é onde está aquele poema. A Musa Impassível, que viera em Mármores, ao mármore voltava.

A escultura ficou junto à sua lápide no cemitério do Araçá, esquecida, até que a filha de Brecheret, Sandra,  numa passagem por lá, deu-se conta de que aquela era obra do pai, isso em 1992. Em 2006, a Musa foi levada à Pinacoteca do Estado de São Paulo, onde foi restaurada.

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Estive diante da Musa Impassível, a de mármore, cinco anos depois da sua chegada à Pinacoteca. O que vi foram 2,80m de formidável feminilidade, que se inicia com a sutileza doce do pé esquerdo levemente soerguido e apoiado para trás no bloco em que ela se sustenta, ela um losango do qual brotam volumes que revelam a expressão arrebatadora do corpo dessa musa coberto por um manto entre evanescente e pesadamente úmido, o tecido se apegando aos joelhos unidos que dali desenham o vértice que se abre para caber os imensos quadris que abrigam o ventre protraído que vai se fechando no torso que suporta seios impossivelmente eretos que conformam o colo que faz surgir a cabeça que é onde, só então, surge o único elemento impassível da musa: seu rosto. E é do alto do seu pescoço que o olhar despenca numa linha afirmativamente sinuosa, guiada pelas abas das vestes que se derramam coladas ao centro, e que são os lábios unidos, repousados, de uma portentosa vulva.

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Musa Impassível
I

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d’ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d’alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.

II

Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o Impassível mora.

Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.

Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,

E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.

(1895)

As Cidades e o Invisível

Somente nos relatos de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidos dos cupins
Italo Calvino,  As Cidades Invisíveis
Que cidade é esta em que tantos vivem,
mas que só você vive,
que só você vê?
É sua a cidade dos que olham para cima?
É sua a cidade dos que olham para o chão,
para as calçadas,
para os degraus?
Ou a sua cidade é a dos que não olham, dos que não vêem?
É sua a cidade em que a barriga pesa até libertar uma nova vida,
ou aquela em que não se pode falar em barriga?
Conte como é a cidade dos que se doem de amor
e a das para quem o ato de amar dói.
Deixe que saibam da cidade dos que ouvem outros sons
e da dos que não ouvem som algum.
Da dos que tocam sons que não se ouve
e a dos que não emitem sons.
Como é a sua cidade, se sua cidade é sua cor?
Como é a cidade
cor de sangue
cor de rosa
estilete e neon
Como é viver na cidade às portas do reino humano de Azeroth?
Venha revelar o território demarcado pelas bandeiras belicosas da bola
Mostre o mapa tatuado na sua carne
Trace as entranhas urbanas
do seu mundo sobre duas rodas
Ou talvez seu domínio tenha duas mais
Ou sua cidade sejam muitas, costuradas por seis, oito, quantos eixos?
Sua cidade é o baixo?
Sua cidade é a zona?
Sua cidade é a vila?
Sua cidade é um império que sacode os quadris, imperatriz?
O viaduto sobre a sua cabeça:
diz de viver sob ele
Vem, homem da cidade-beco,
Aprochegue-se mulher que dorme sobre o meio-fio da via expressa
 que nem mais levanta os olhos
que nem mais tem o reflexo
de se defender da freada
da buzina
da batida
do seu nada
conte o que ainda vê
fale do que ainda importa
talvez uma margarida
talvez uma presilha
talvez o ato de esquecer: o que só você saberá
Que foi feito da Cidade Náutica?
Como é nadar na Cidade Ocian?
Que resta da Cellula-Mater da Nacionalidade?
Sua cidade é uma represa
ou uma represa a sua cidade?
Fale da secreta cidade das casas ornadas de ciprestes
Segrede as falas inauditas que correm entre os últimos ciprestes
Entoe a revelação da cidade dos homens de deus
Defenda a cidadela dos homens sem deus
Quantas cidades há num prédio de apartamentos?
Quantas cidades há num desentendimento?
Quem cantará o apagar da luz cinérea
que desenhava a Cidade-Estado do Edifício São Vito?
Aproveite e fale da Cidade da Eterna Primavera,
(o Mercado Municipal)
E você outro, desguarde as confidências daquele entorno
terra de Fagins e ratazanas do terceiro pecado.
É preciso
Sempre é preciso uma pausa
sem a qual não se perceberá
a cidade
encoberta pelo olhar viciado do quotidiano,
a cidade atrás do biombo fosco da indiferença
a cidade apenas tímida,
hipodérmica
recôndita:

a cidade invisível.

Caio Leonardo 2004/2017

(Texto originalmente concebido em 2004, como apresentação de uma comunidade do Orkut, rede social abandonada como um bairro que a especulação imobiliária mandou esquecer)

Rosa, a mais bela flor do Lácio

Guimarães Rosa é o maior escritor de todos os tempos. Eis aí um jeito antipático de começar uma conversa.

Falava-se espanhol com diferentes procedências e qualidades em mais uma mesa composta pelo Ministro Conselheiro Devoto. Era improvável que todos estivessem se entendendo, então aproveitei para fazer umas afirmações vindas daquilo que brotava da terceira taça de vinho depois do espumante de boas-vindas. Vinho acaba rápido com meu discernimento.

rosa com vaqueiros

Naquela noite, éramos bolivianos, canadenses, venezuelanos, argentinos e brasileiros, todos ingredientes do jantar comandado pelo mais célebre Ministro Conselheiro que a terra de Borges y Bioy-Casares já produziu. Fomos todos imersos na casa de pouca luz,  lugar onde sempre me sentia num dos jantares aéreos de Santos Dumont,  servidos lá em cima, no alto do quinto lance de escadas escherianas por suas diagonais vertiginosas, marca da arquitetura da mansão escondida em meio às florestas do Lago Sul, erguida em madeira de lei, ornada de vidro, verde e pássaros da noite.

O espanto, porque é de espanto que se trata, o espanto com a obra de Rosa foi o que, por algum efeito colateral, quis passar à majestática Sra. Paz-Estenssoro, ao terrível Ivan Godoy e à monumental Gabriela Rosso, os ouvidos mais próximos.

Rosa é único, este foi o ponto de partida. Ele inventou uma língua, cuja base é o português falado no sertão de Minas e de Goiás, mas esse português foi desconstruído e desarranjado por meio de recursos a experiências gramaticais, semânticas e fonéticas que Rosa ia buscar na dúzia de idiomas que conhecia, mal ou bem. Isto é o que se diz sempre que se fala dele, nenhuma novidade.

Mas… o que diferencia Rosa de Faulkner? (Neste momento, os três deviam ter-se voltado para o outro lado da mesa, em fuga, mas não…) Faulkner também foi buscar um falar de gente do interior para construir tramas complexas e oferecer personagens de alta densidade dramática, mesmo que num conto. Mas Faulkner recorria à mímese, à imitação. Rosa não imita: ele esconde na sua linguagem uma complexidade de composição inigualada, que no entanto ainda soa como o falar de gente simples. Se Rosa não imita, imito eu o Rosa, nessa canção de boiadeiro sussurrada em curva de rio, desmargem que se encordeia verdejar adentro, ponto de descanso aos cafuis, que no sertão é outro o nome das horas,  e na boca da noite os olhos areiam venosos, na antecipação do muito cedo que é o acordar no descampado, no quebrar da barra, rosto ornado de orvalho lagriluminoso.

Quando se pensa em complexidade e literatura, Joyce é inevitável. Joyce também reinventou o inglês – e inventou complexas estruturas narrativas, com o que Rosa também gostava de brincar, basta ver o que fez em Sagarana, mais especificamente em Matraga e todas as suas referências clássicas escondidas atrás de uma folha, de uma vela, do que ele quisesse. Mas Joyce tramou contra o inglês convencional por cima, enquanto Rosa conspirou por baixo a favor do português. Joyce é abertamente culto e sofisticado. Rosa é o baú rústico em que se esconde o Aleph.

Rosa não é linear, Joyce até que é, ao menos no Ulysses, já que é uma trama contra o tempo, incrustada nas mais famosas 24 horas deitadas em livro. A descontinuidade vertiginosa parece ter surgido com Lawrence Sterne, que está em Joyce, no Machado de Memórias Póstumas, e também em Rosa, no mínimo por sua inapetência pelo corriqueiro, pelo formal, pelo burocrático – e por Belenos!, esse homem era um diplomata…

De onde é que Rosa foi tirar coragem para falar de povo e como povo, com o intento de fazer grande literatura e não literatura regional? Rabelais terá sido o primeiro autor a retratar o povo, o imaginário do povo, as coisas da plebe. Mas retratou isso com uma linguagem rebuscada e fiel ao que via. Rosa não tem linguagem rebuscada, muito menos era fiel ao que via: a experiência roseana é lisérgica, mais que sinestésica.

Depois do Porto Ruby, eu já era valente o quanto seja preciso para sustentar que Rosa é maior que Rabelais, Sterne, Joyce e Faulkner, e só me circundava, me perseguia o medo de que alguma alma sensata e estraga-prazeres viesse podar meu roseiral de ufanidades, jogando o Bardo sobre a mesa como quem grita Truco! Mas eram todos, obviamente menos eu, diplomatas, então Shakespeare não veio em socorro da hierarquia das letras, e passamos, ladies first e belo jantar, para o café curto com lascas de chocolate.

A Argentina abandonou o Brasil quando enviou Guillermo Devoto à China. Sua ida pôs fim àquela secreta filial do Tortoni e deixou a muitos sem ter onde recusar um mau charuto com o apoio auto-irônico do anfitrião.

Caio Leonardo
18.10.2008