Na Avenida

O garoto deixa cair a perna do muro.

 

Deve ser o 8.

Ele avança passo firme até o meio-fio.

Estica o braço.

 

É o 23.

Faz que não para o motorista.

 

O motorista freia, para e abre

a porta de saída –

que ainda era a da frente.

O garoto e o motorista se ameaçam

com os olhos

pelo tempo da descida de uma senhora:

sacola de plástico quadriculada,

acelga e bengala amanhecida.

Ela se agarra onde pode.

O último degrau é o abismo.

Os dois aguardam o gongo

enquanto ela aterrissa:

albatroz-de-sobrancelha-negra

de lenço na cabeça.

As asas balançam na direção da

Rangel Pestana.

 

O câmbio berra, engasga e

o 23 ruge em direção à praça do Correio.

O garoto sente passar o calor do motor,

a porta da frente se fecha com estrondo.

Os olhos se largam: empate.

 

O garoto dá cinco passos de costas e

finca de novo a sola do bamba no muro –

no último muro de casarão

na Presidente Wison.

As costas no muro,

a palma das mãos entre as costas

e o muro.

Ele sente alívio e incômodo:

no frio do muro branco,

nas rugas grossas do muro chapiscado.

Faz sombra a mangueira

que vem de dentro do casarão.

 

O garoto recosta, com cuidado,

a sua cabeça no muro, e aplica

um olhar sem direção, ausente.

 

Ausente, nada.

No outro lado da avenida,

de um certo sexto andar,

Gisela pode estar espiando.

O olhar transita

daqueles seis andares do edifício Itu

para os doze andares do São Rafael… Lá,

mora a professora Mari!… O garoto

deixa cair a perna do muro.

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As Cidades e o Invisível

Somente nos relatos de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidos dos cupins
Italo Calvino,  As Cidades Invisíveis
Que cidade é esta em que tantos vivem,
mas que só você vive,
que só você vê?
É sua a cidade dos que olham para cima?
É sua a cidade dos que olham para o chão,
para as calçadas,
para os degraus?
Ou a sua cidade é a dos que não olham, dos que não vêem?
É sua a cidade em que a barriga pesa até libertar uma nova vida,
ou aquela em que não se pode falar em barriga?
Conte como é a cidade dos que se doem de amor
e a das para quem o ato de amar dói.
Deixe que saibam da cidade dos que ouvem outros sons
e da dos que não ouvem som algum.
Da dos que tocam sons que não se ouve
e a dos que não emitem sons.
Como é a sua cidade, se sua cidade é sua cor?
Como é a cidade
cor de sangue
cor de rosa
estilete e neon
Como é viver na cidade às portas do reino humano de Azeroth?
Venha revelar o território demarcado pelas bandeiras belicosas da bola
Mostre o mapa tatuado na sua carne
Trace as entranhas urbanas
do seu mundo sobre duas rodas
Ou talvez seu domínio tenha duas mais
Ou sua cidade sejam muitas, costuradas por seis, oito, quantos eixos?
Sua cidade é o baixo?
Sua cidade é a zona?
Sua cidade é a vila?
Sua cidade é um império que sacode os quadris, imperatriz?
O viaduto sobre a sua cabeça:
diz de viver sob ele
Vem, homem da cidade-beco,
Aprochegue-se mulher que dorme sobre o meio-fio da via expressa
 que nem mais levanta os olhos
que nem mais tem o reflexo
de se defender da freada
da buzina
da batida
do seu nada
conte o que ainda vê
fale do que ainda importa
talvez uma margarida
talvez uma presilha
talvez o ato de esquecer: o que só você saberá
Que foi feito da Cidade Náutica?
Como é nadar na Cidade Ocian?
Que resta da Cellula-Mater da Nacionalidade?
Sua cidade é uma represa
ou uma represa a sua cidade?
Fale da secreta cidade das casas ornadas de ciprestes
Segrede as falas inauditas que correm entre os últimos ciprestes
Entoe a revelação da cidade dos homens de deus
Defenda a cidadela dos homens sem deus
Quantas cidades há num prédio de apartamentos?
Quantas cidades há num desentendimento?
Quem cantará o apagar da luz cinérea
que desenhava a Cidade-Estado do Edifício São Vito?
Aproveite e fale da Cidade da Eterna Primavera,
(o Mercado Municipal)
E você outro, desguarde as confidências daquele entorno
terra de Fagins e ratazanas do terceiro pecado.
É preciso
Sempre é preciso uma pausa
sem a qual não se perceberá
a cidade
encoberta pelo olhar viciado do quotidiano,
a cidade atrás do biombo fosco da indiferença
a cidade apenas tímida,
hipodérmica
recôndita:

a cidade invisível.

Caio Leonardo 2004/2017

(Texto originalmente concebido em 2004, como apresentação de uma comunidade do Orkut, rede social abandonada como um bairro que a especulação imobiliária mandou esquecer)