Rosa, a mais bela flor do Lácio

Guimarães Rosa é o maior escritor de todos os tempos. Eis aí um jeito antipático de começar uma conversa.

Falava-se espanhol com diferentes procedências e qualidades em mais uma mesa composta pelo Ministro Conselheiro Devoto. Era improvável que todos estivessem se entendendo, então aproveitei para fazer umas afirmações vindas daquilo que brotava da terceira taça de vinho depois do espumante de boas-vindas. Vinho acaba rápido com meu discernimento.

rosa com vaqueiros

Naquela noite, éramos bolivianos, canadenses, venezuelanos, argentinos e brasileiros, todos ingredientes do jantar comandado pelo mais célebre Ministro Conselheiro que a terra de Borges y Bioy-Casares já produziu. Fomos todos imersos na casa de pouca luz,  lugar onde sempre me sentia num dos jantares aéreos de Santos Dumont,  servidos lá em cima, no alto do quinto lance de escadas escherianas por suas diagonais vertiginosas, marca da arquitetura da mansão escondida em meio às florestas do Lago Sul, erguida em madeira de lei, ornada de vidro, verde e pássaros da noite.

O espanto, porque é de espanto que se trata, o espanto com a obra de Rosa foi o que, por algum efeito colateral, quis passar à majestática Sra. Paz-Estenssoro, ao terrível Ivan Godoy e à monumental Gabriela Rosso, os ouvidos mais próximos.

Rosa é único, este foi o ponto de partida. Ele inventou uma língua, cuja base é o português falado no sertão de Minas e de Goiás, mas esse português foi desconstruído e desarranjado por meio de recursos a experiências gramaticais, semânticas e fonéticas que Rosa ia buscar na dúzia de idiomas que conhecia, mal ou bem. Isto é o que se diz sempre que se fala dele, nenhuma novidade.

Mas… o que diferencia Rosa de Faulkner? (Neste momento, os três deviam ter-se voltado para o outro lado da mesa, em fuga, mas não…) Faulkner também foi buscar um falar de gente do interior para construir tramas complexas e oferecer personagens de alta densidade dramática, mesmo que num conto. Mas Faulkner recorria à mímese, à imitação. Rosa não imita: ele esconde na sua linguagem uma complexidade de composição inigualada, que no entanto ainda soa como o falar de gente simples. Se Rosa não imita, imito eu o Rosa, nessa canção de boiadeiro sussurrada em curva de rio, desmargem que se encordeia verdejar adentro, ponto de descanso aos cafuis, que no sertão é outro o nome das horas,  e na boca da noite os olhos areiam venosos, na antecipação do muito cedo que é o acordar no descampado, no quebrar da barra, rosto ornado de orvalho lagriluminoso.

Quando se pensa em complexidade e literatura, Joyce é inevitável. Joyce também reinventou o inglês – e inventou complexas estruturas narrativas, com o que Rosa também gostava de brincar, basta ver o que fez em Sagarana, mais especificamente em Matraga e todas as suas referências clássicas escondidas atrás de uma folha, de uma vela, do que ele quisesse. Mas Joyce tramou contra o inglês convencional por cima, enquanto Rosa conspirou por baixo a favor do português. Joyce é abertamente culto e sofisticado. Rosa é o baú rústico em que se esconde o Aleph.

Rosa não é linear, Joyce até que é, ao menos no Ulysses, já que é uma trama contra o tempo, incrustada nas mais famosas 24 horas deitadas em livro. A descontinuidade vertiginosa parece ter surgido com Lawrence Sterne, que está em Joyce, no Machado de Memórias Póstumas, e também em Rosa, no mínimo por sua inapetência pelo corriqueiro, pelo formal, pelo burocrático – e por Belenos!, esse homem era um diplomata…

De onde é que Rosa foi tirar coragem para falar de povo e como povo, com o intento de fazer grande literatura e não literatura regional? Rabelais terá sido o primeiro autor a retratar o povo, o imaginário do povo, as coisas da plebe. Mas retratou isso com uma linguagem rebuscada e fiel ao que via. Rosa não tem linguagem rebuscada, muito menos era fiel ao que via: a experiência roseana é lisérgica, mais que sinestésica.

Depois do Porto Ruby, eu já era valente o quanto seja preciso para sustentar que Rosa é maior que Rabelais, Sterne, Joyce e Faulkner, e só me circundava, me perseguia o medo de que alguma alma sensata e estraga-prazeres viesse podar meu roseiral de ufanidades, jogando o Bardo sobre a mesa como quem grita Truco! Mas eram todos, obviamente menos eu, diplomatas, então Shakespeare não veio em socorro da hierarquia das letras, e passamos, ladies first e belo jantar, para o café curto com lascas de chocolate.

A Argentina abandonou o Brasil quando enviou Guillermo Devoto à China. Sua ida pôs fim àquela secreta filial do Tortoni e deixou a muitos sem ter onde recusar um mau charuto com o apoio auto-irônico do anfitrião.

Caio Leonardo
18.10.2008