Itinerário

Para Patrícia

Os muros da cidade

as pedras, as escadas.

Os murros da cidade,

as perdas, as estradas.

Sussurros, as idades,

as heras, as fadas.

Os escuros, claridades,

as feras, pegadas.

Os estudos, as novidades,

as eras, os nadas.

O tudo que é o dar-se,

as veras auroras.

Os muitos, as marcas,

as serras, os vales.

Os anos, as veredas:

os cinco do princípio,

os três em que são dois.

O todo, o caminho.

O ÚLTIMO VERÃO ANTES DO PASSADO

(texto de 2014, em que uma voz faz saber o que certos muitos fariam – e vieram a fazer – nos verões seguintes, para nos levar a todos ao que sabíamos que outros haviam feito em verões já então passados)

No seu MacBook Air,
um olhar contemporaneamente brasileiro
vai do terroir
ao terror.

E se subleva,
confortavelmente,
entre amigos.

As vísceras estão expostas, seu Brasil é horrível.
Já foi pior, mas não era possível ver.
Agora se pode. Agora ele vê.
Ele vê julgamentos. Vê condenações.
Como nunca antes.

E então ele julga.

Diariamente, julga. Condena.
Uma dose diária de indignação cívica.

Por ver pela primeira vez,
acredita que tudo o que vê
acontece pela primeira vez.

E ele então se subleva –
entre a foto de um malbec,
um video de trombadas na Rússia
e uma espiada num perfil ousado,
ele se subleva.
Mergulhado na sua solidão,
nas dores que ele mal reconhece,
ele se subleva.
Dia após dia,
ele se subleva.

Com um clique.

A queda do véu das aparências
é demais para ele, diante da tela de alta resolução.
Aquela dose diária já não basta.

Surge a multidão,
em ato e em potência,
retroalimentada pela clique dos cliques,
entorpecida pela luz da tela e o prazer
mórbido
do julgamento e da condenação
fáceis.

E vai ele,
e vai a multidão
atrás de doses mais fortes.

Na multidão,
mesmo os que pensam
que pensam,
amalgamam-se, amoldam-se,
desaparecem.
Para não sumirem no espetáculo,
constroem cicatrizes na carne
sua e do Outro,
para exposição imediata,
mediática:
estética da violência.

Os cadáveres já estão aí.
De todos os lados do jogo.
O morador de rua,
a dona de casa,
o cinegrafista.

O jogo segue sem regras,
nem objetivos.

Seguirá até
a ruptura
do esgarçado tecido das relações de poder

Quando então os fantasmas
não serão mais meras postagens compartilhadas.

Quando então o retrogosto
de um vinho aparentemente envelhecido
mostrará de novo seu amargor.

Quando então alguns despertarão
para o fato de que o horror de hoje
está em finalmente podermos enxergar tudo e todos
como realmente é e somos

Quando então a transparência insuportável
dará lugar à velha noite
em que os adultos de hoje nasceram

Quando então voltaremos
a marcar o passo.

Quando então será tarde demais
para ser consequente.

caio leonardo, 19 de fevereiro de 2014. Meses antes.

O Feminino e o Mito

ilustração de Gabriel Jarnier para a capa de Fodder on my Wings, album de Nina Simone, 1982

Os homens estão em farrapos, rastejam na lama, armas ao chão. A nação está derrotada. Todos com pavor de quem assumirá o poder após uma vitória manchada de sangue e ódio. Homens e mulheres de bem fogem para o exterior. “A agonia da espera faz que desejem a chegada do inimigo”. Surge a carruagem.

Estamos em 1871, na cena de abertura da novela “Bola de Sebo”, de Guy de Maupassant. O exército da França foi derrotado; os soldados da Prússia invadem o país. “Bola de Sebo” é uma prostituta decadente, corpulenta. Ela entra na carruagem lotada de personagens da alta classe. Todos na mesma situação, e nada diminui o desprezo que sentem por ela. Partem. Ao anoitecer, param numa estalagem, que descobrem estar tomada por soldados prussianos. São presos e humilhados. O comandante se encanta com “Bola de Sebo”, que imediatamente o odeia, para surpresa geral. Indignado, ele afirma que todos morrerão caso ela não durma com ele aquela noite. Os homens e mulheres de bem passam a implorar sua ajuda. Ela lhes dá um voto de confiança e se entrega, a contragosto, ao oficial. Salva os que a menosprezavam. E volta a ser tratada com o nojo de sempre logo que os homens e mulheres de bem se veem livres do perigo.

Outra mulher negligenciada foi criada por Bertolt Brecht e Kurt Weil no fim da década de 1920: Jenny Pirata (“Seeräuber Jenny”), uma faxineira de hotel barato em Londres revoltada pelo modo como é tratada pelos hóspedes. Jenny sonha ser a líder de piratas que invadirão a cidade num navio negro, e matarão todos a mando dela. Brecht inspirou-se na ladra irlandesa Jenny Diver, que roubava na Londres do século 18. “Jenny Pirata” surge como canção na Ópera dos Três Vinténs e é interpretada pela personagem Polly Peachum, namorada e filha de ladrão.

Na Ópera do Malandro, Chico Buarque compõe uma personagem inspirada na Bola de Sebo de Maupassant, na faxineira pirata de Brecht e em Madame Satã, lendário travesti carioca. Chico transforma a estalagem do Maupassant num Zepelim. Os canhões libertadores do navio pirata de Brecht tornam-se os opressores do Zepelim. A compassiva prostituta de Maupassant e a revoltosa faxineira de Brecht misturam-se no oprimido, libertário, humilhado e violento Genival, vulgo Geni — boa de apanhar, boa de cuspir.

Quando Nina Simone interpreta a sua Pirate Jenny, ela usa a faxineira de Brecht, mas a coloca num hotel do Sul dos Estados Unidos. O Sul da segregação racial. Essa quarta Jenny sonha com canhões assestados contra os racistas da cidade. O modo como Nina encerra a canção é um assombro poderoso, um susto na plateia que, num ataque violento ao piano acompanhado de uma ordem-grito, sente-se executada em público.

Nina podia ser tão explosiva que o dono de um bar no Village em Nova York, onde cantava, decidiu contratar seguranças para defender os clientes dos ataques dela. Seus ataques eram físicos e musicais. Não era confortável ser branco na plateia desse ícone dos direitos dos negros. Em “Four Women”, que compôs em 1966, Nina retrata quatro negras conforme os estereótipos da segregada sociedade que combatia. A primeira é Aunt Sarah, negra velha do costado forte de quem aguentou muito castigo e dor na vida. Depois vem Sephronia, a mestiça perdida entre dois mundos, filha do estupro da mãe negra pelo pai branco e rico. A terceira é Sweet Thing, a morena queimada de sol, a bela prostituta que se aproveita dos clientes. Ao final, surge Peaches, de pele marrom e atitude desafiadora, que não se submete ao papel da mulher tradicional (“I’ll kill the first mother I see”).

O labirinto de mulheres violentadas somado à vertigem da cena da derrota de uma nação pela violência, simbólica ou não, das armas, serve para rascunhar o ambiente que se vive atualmente no Brasil de antes das eleições de 2018.

As mulheres são agora a maioria dos eleitores e podem definir o vencedor. Há 100 anos, entretanto, Celina Guimarães Viana era a primeira mulher brasileira a votar numa eleição. A então Lei Eleitoral do Estado do Rio Grande do Norte dispunha inovadoramente que o direito ao voto seria exercido sem distinção de sexo.

“Ao destino lhe agradam as repetições, as variantes, as simetrias”, disse Borges. Numa ironia que pode vir a ser trágica, o artigo da lei que permitiu que Celina votasse foi o 17.

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Caio Leonardo Bessa Rodrigues – @caioleonardobr – publicado em 26 de setembro de 2018, no Blog da Ema.

Uma Geração Perdida Assume o Comando

A geração que nasceu entre os anos 1960 e 1970 chegou ao poder. É a turma que está na casa entre os 40 e 60 anos. São os filhos da revolução sexual: a pílula anticoncepcional, que chegou ao mercado precisamente em 1960, abriu o caminho para o amor livre e o sexo antes do casamento, tornou velho o plano de nascer, crescer, casar, ter filhos e morrer. As regras do relacionamento a dois foram sendo abandonadas. Não havia mais regras. Valia tudo.

Mas essa geração era criança nessa época. Alcançou a adolescência nos anos 1980. E foi nessa época que a liberdade sexual sofreu a contrarrevolução da AIDS. A liberdade sexual a partir de então era risco de morte, mas o casamento, as regras da vida a dois já não valiam mais. Namorar, casar era coisa muito antiga. Sem saber o que fazer, porque não havia um caminho predefinido como antigamente, tudo passava a exigir negociação. A busca do prazer pregada na década anterior começava a dar medo, e querer uma relação a dois dava mais medo ainda, porque a fórmula havia sido perdida, jogada fora.

No meio dos anos 1990, veio a revolução tecnológica. Com a internet, a rua entrou em casa. A casa deixou de ser “o asilo inviolável do indivíduo”, as salas de bate-papo derrubaram muros e as últimas convenções. Práticas sexuais antes secretas passaram a ser de conhecimento comum. As possibilidades de relacionamento sexual ganharam novos, perturbadores horizontes. Essa geração perdeu o rumo e as referências. Se a revolução sexual dos anos ´60 tinha sido um movimento social com um pensamento crítico a embasá-la, a revolução tecnológica abriu as portas da percepção sem qualquer reflexão. Informação demais, possibilidades demais, regra nenhuma. Diante da tela do computador estava um indivíduo que podia tudo e não compreendia nada do impacto desse poder sobre sua existência.

Essa geração foi educada no auge da ditadura e começou sua vida profissional nos anos da hiperinflação, quando era impossível planejar o dia seguinte. Viveu a transição do fim da Guerra Fria e a velocidade, o impacto, a intensidade e a extensão das novas relações comerciais, políticas e sociais sob o signo da globalização. Assistiu a meros doze anos de crescimento neste século. Fez tudo ruir estrondosamente.

Anthony Giddens disse: “Somos a primeira geração após o fim da natureza.” Também a mais solitária e, no Brasil, a mais historicamente inconsequente. Segure-se, pois é ela, agora, quem manda.

Caio Leonardo

(Texto anteriormente publicado no jornal Bom Dia. Revisto e alterado)

A Musa Impassível

“A Musa Impassível”, Victor Brecheret, 1923 – Pinacoteca do Estado de São Paulo

 

Quando Eldorado ainda era Xiririca, surgiu Francisca Júlia. Em 1891, ela ganhou São Paulo aos 20 anos, como poetisa e crítica literária. Fez sucesso antes mesmo de seu primeiro livro ser publicado. No Brasil do século 19, obviamente não haveria de ser fácil uma mulher firmar-se como poeta. Como era Brasil, as dificuldades que ela enfrentou precisavam conter, em algum ponto, uma dose qualquer de histrionismo: Dois escritores de renome se esbofetearam na imprensa sem saberem que por causa dela. João Ribeiro assinou como Maria Azevedo um ataque a Raimundo Correia, que ele achou que usasse “Francisca Júlia” como pseudônimo.

Nem passou pela pena do poeta que a pena de uma poetisa pudesse aquilo tudo.

Francisca Júlia foi grande, foi intensa, misteriosa, melancólica, foi parnasiana, foi simbolista e, se não chegou a ser modernista, os modernistas a achavam grande.

A crítica literária parece ser unânime quanto à altura que ela alcançou como parnasiana – seus contemporâneos a incensavam. Suas rimas internas são cristais em que o leitor tropeça surpreso no caminho, e seus enjambements são desfiladeiros curvos que o levarão vertiginosamente ao reverso do verso seguinte.

Sua abertura ao simbolismo, no entanto, marcou a entrada do esotérico em sua vida. E foi doloroso.

Com 35 anos, deixou de escrever e de frequentar as rodas literárias, o misticismo foi tomando espaço no seu pensamento. (Arrisco imaginar, da distância imensa que há entre mim e o que foi a sua vida, que o desapego pregado pelo budismo possa ter tido algum papel nesse seu recolhimento). Não foi uma vida tranquila, intelectual e espiritualmente, a que decidiu ter. Mudou-se para o interior, foi morar com a mãe, deu aulas, cuidou da casa. E com a mãe voltou a São Paulo em 1908 e, lá, um ano depois, casou-se com um poema.

Ah, se não é um poema o tanto que há de sublime em alguém se apaixonar pelo telegrafista da estação do Lajeado, na Estrada de Ferro da Central do Brasil; ele, um senhor de 45 anos que atendia por Philadelpho Edmundo –  ou, talvez, por Sr. Munster, sobrenome que causa a saborosa dúvida de ter ele sido anglo ou saxão. Imaginar como a poetisa encontrou essa personagem seria insondável, se não se soubesse que a mãe dela havia sido transferida para a escola que ficava na tal estação do Lajeado, a atual Guaianazes.

Francisca Júlia afastou-se dos poetas, mas se casou como poeta e morreu poeticamente, horas depois do marido, por overdose de calmantes.

Acorda!
que o cortejo dos amores trágicos
não cessa

O enterro de Francisca Julia e Philadelpho tornou-se um acontecimento nos meios literários, já acossados pelos modernistas. Era 1920. A história registra a presença de Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti…

Três anos depois, estava pronta a homenagem dos modernistas à parnasiana: uma escultura de Victor Brecheret, em mármore, que levava o nome de um poema dela, A Musa Impassível. “Mármores” é o nome do seu primeiro livro, que é onde está aquele poema. A Musa Impassível, que viera em Mármores, ao mármore voltava.

A escultura ficou junto à sua lápide no cemitério do Araçá, esquecida, até que a filha de Brecheret, Sandra,  numa passagem por lá, deu-se conta de que aquela era obra do pai, isso em 1992. Em 2006, a Musa foi levada à Pinacoteca do Estado de São Paulo, onde foi restaurada.

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Estive diante da Musa Impassível, a de mármore, cinco anos depois da sua chegada à Pinacoteca. O que vi foram 2,80m de formidável feminilidade, que se inicia com a sutileza doce do pé esquerdo levemente soerguido e apoiado para trás no bloco em que ela se sustenta, ela um losango do qual brotam volumes que revelam a expressão arrebatadora do corpo dessa musa coberto por um manto entre evanescente e pesadamente úmido, o tecido se apegando aos joelhos unidos que dali desenham o vértice que se abre para caber os imensos quadris que abrigam o ventre protraído que vai se fechando no torso que suporta seios impossivelmente eretos que conformam o colo que faz surgir a cabeça que é onde, só então, surge o único elemento impassível da musa: seu rosto. E é do alto do seu pescoço que o olhar despenca numa linha afirmativamente sinuosa, guiada pelas abas das vestes que se derramam coladas ao centro, e que são os lábios unidos, repousados, de uma portentosa vulva.

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Musa Impassível
I

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d’ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d’alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.

II

Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o Impassível mora.

Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.

Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,

E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.

(1895)