Blues para Jonas e Jerry

29 de janeiro de 2010, para o filho do seo Raul

Quando meu pai morreu, a missa de 7º dia foi na Matriz de São Vicente. Fiquei de ler a elegia que tinha preparado, mas me atrapalhei com o microfone e ninguém me ouviu, apesar dos cutucões que o padre Paulo me dava, eu todo lá concentrado e inaudível, ridículo e devastado, poeta amador a toda prova. Semana passada, morreu Jerome David Salinger, Jerry para os pouquíssimos íntimos, escritor cujo estilo busco decifrar como um filho a seu pai, imitando gestos, procurando a própria identidade no mestre. Dei de presente dois natais seguidos “O Apanhador no Campo de Centeio” à Maria Antonia, minha sobrinha, coitada.

A notícia da morte de Salinger surgiu à tarde, mas, de manhã, no táxi que peguei no Brasília Alvorada pra ir ao escritório no Brasil 21, vi, no bolso da porta, espremido atrás de um livro que fala mal do Sarney, outro de capa cinza, letras gelo, que diziam “O Ap…” A corrida toda transcorrera em silêncio até ali, silêncio quebrado com a pergunta sobre se alguém tinha esquecido o livro que mostrei . Era do taxista, mesmo. A ideia de o livro não estar perdido, de que havia um leitor ao meu lado, me encheu de uma alegria de nefelibata, que deu lugar ao que sempre se pensava quando se pensava em Salinger: como vai ser quando ele morrer? Há coisas dele escondidas? Continuou escrevendo esses anos todos?

Escrevi para amigos:
“Morreu JD Salinger. O dia que eu tanto temia chegou. Chegou antes da sua reconciliação com a humanidade. Antes de ele permitir que pudéssemos ler mais dele. Salinger foi o mestre consumado da hipotipose e do diálogo natural, superando seu predecessor, F. Scott Fitzgerald. Ninguém o superou até hoje nessas duas artes. A terceira em que era excelente, a construção de personagens infantis. Mas aqui ele tem quem esteja à sua altura: Guimarães Rosa. E só.
E agora? Ele destruiu tudo que escreveu a partir de 1960? Seguiu escrevendo? Morto, não vai mais se incomodar com a leitura acadêmica ou estereotipada que o afligiu ao ponto da reclusão, e terá permitido acesso a um legado escondido? A morte de Salinger é algo como o Apocalipse. Agora vamos saber se o mundo acabou ou se outro é que surgirá”.
Herdei esses exageros da minha mãe, Laura.

Dos contos reunidos em “Nine Stories”, o mais comentado parece ser “A perfect day for bananafish”, mas “For Esmé with Love and Squalor” e “Teddy” é que são meus preferidos: complexas construções narrativas que não deixam entrever os andaimes, as escadas, a carpintaria toda que exigiram para estarem ali, com o frescor das coisas de Salinger.

No Orkut, quem diria, tive acesso a outros contos dele não reunidos nos quatro únicos títulos publicados “oficialmente” em livro; e também a “Hapworth 16, 1924”. Eram raridades. No dia da morte de Salinger, o Twitter ofereceu tudo a todos em poucos minutos. Porém, ainda fica a angústia da dúvida sobre se haverá mais o que ler dele.

O Pira, em homenagem a esse mestre, postou para os Valami Lesz (legendário lista de discussão virtual),o poema “Funeral Blues”, de W. H. Auden. O Pira é Henrique d’Arce, que é de Piracicaba, então está explicado. Estudamos juntos no Largo São Francisco. Hoje, ele mora em Londres e dá aulas de inglês. Nos encontramos em dezembro do ano passado. Tomamos umas “pints”, enquanto eu engraxava botas, num pub barulhento e sujo em Cavendish Square.

Naquela noite, outro taxi nos levou ao Soho. Chovia uma triste chuva de resignação. Dali partimos para um breve passeio pelas memórias de uma Londres fin-de-siècle, feita de Bar Itália e Neal’s Yard; High Holborn e Sarastro, cujo dono sempre me recebia com uma taça de champagne e uma conversa absurda, porque eu não entendia coisa alguma do seu cockney com sotaque cipriota. Fiquei sabendo então que o dono morrera no ano anterior.

No poema de Auden, o autor dispensa as estrelas, manda apagar o céu, embrulhar a lua e desmantelar o sol, porque seu amor morreu. Pira e eu temos, como tanta gente, esse amor por Salinger. Lá entre os Valamis, Pira, que fez aniversário ontem, veio com Funeral Blues para Salinger, mas também para si mesmo, que ele perdeu o pai recentemente. Juntei meu balde despejado ao dele, e postei na lista a tradução que fiz desse mesmo poema. Tradução que li na Matriz de São Vicente, em 1997, como fecho da elegia a Jonas Rodrigues.

Blues de Funeral

Esquece as horas, corta o telefone.

Cala co’um osso o cão e sua fome.

Silêncio ao piano: co’um surdo tambor,

Traz o féretro, deixa entrar a dor.

Sobre as cabeças, aviões gemam sem porto,

Anunciando lá de cima: Ele está morto.

Põe um laço de crepe nas alvas pombas da praça

E note o guarda com luvas negras, aquele que passa.

Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste,

Meus dias úteis e meu domingo em festa,

Meu meio-dia e a meia-noite, minha prosa e canção;

Pensei que esse amor fosse para sempre; mas, não.

Estrelas não é mais preciso: apaga o céu.

Embrulha a lua e desmantela o sol;

Esvazia o oceano, derruba a mata;

Pois tudo agora não vale mais nada”.

Caio Leonardo, filho de Jonas, leitor de Jerry

29 de janeiro de 2010

O Baile na Rua Aurora

BartôByHopper

Acho que foi o Sandor Ney, ou talvez o Georges Jazzar, mas alguém jogou no grupo de discussão a novidade de que tinha descoberto um bom restaurante peruano na improvável rua Aurora, registrada em verso, prosa, canção e boletins de ocorrência. Começou um alvoroço. Não podia ser aquela  rua Aurora, piroca dentro, piroca fora. Mas em que altura? Perto do Bar Leo? É seguro? Fica na Boca do Lixo? Ainda existe a Boca do Lixo?

Enquanto eles discutiam isso em São Paulo, eu, de Brasília, comecei um passeio vertiginoso via Google Street View. Apeei meu cavalo virtual na esquina da avenida Rio Branco com a Aurora e comecei a descê-la em direção à Vieira de Carvalho, que é o que se poderia chamar de “área nobre” dali. Foi, mesmo, um dia. Ali surgiu o Rubaiyat, ali ficava o mais antigo restaurante de São Paulo.

Mas no hoje do meu passeio por aquela lente panóptica, a Aurora apresentava suas velhas credenciais logo na esquina com a Rio Branco: um American Bar, senha para inferninho. Sigo adiante e, passadas umas portas sem pistas, mas que escondem muita história, surge no nº 427 um hotel talvez chamado Lugus (difícil dizer, a imagem da placa é aguardentemente distorcida). O hotel é vizinho de uma venda, um mercadinho sem nome nem número, de parede azul, com duas portas, uma delas aberta, já são 9h30 ou 10 da manhã no instantâneo que me guia. Para dentro da porta aberta, movimento, clientes, objetos, caixa registradora, comércio. Para dentro da porta fechada, por trás de uma cortina de ferro vazada em losangos, uma década de fórmicas, madeiras e ferros empilhados, coisas sem uso esquecidas na sombra, mas visíveis da rua. Meu olhar atravessa a porta de volta para a rua por entre os losangos de ferro e se depara com o que jaz na soleira do mercadinho azul, sem nome, da rua Aurora, sem número.

Naquela soleira, estirado sobre a pedra preta polida típica dos degraus de construções no centro de São Paulo, jaz a figura de um homem de passado violento, ocupação incerta e futuro mais ainda, coberto de blue jeans de corpo e alma, alma alugada para a boêmia.

Sobre os olhos, enormes óculos escuros que remetem a Ray Charles mas num degradante marrom degradê; as canelas exibem meias beiges combinando com o mocassim marrom que faz dele outro Paco perdido no fim de uma noite suja, acolhido pela indiferença do pouco comércio diurno de uma rua que vive da madrugada e seus pecados. O braço direito dele, manga arregaçada, aponta desmaiado para a sarjeta que está a metro e meio, mas inteira dentro dele.

A noite deve ter recebido como um astro aquele alter ego de Bartô Galeno, colete azul escuro de cantor de rádio, de caminhoneiro garboso, garantia de atenção das moças e dos garçons nos shows de strip tease do teatro Orion, na altura do 753. Não deve ter sido fácil percorrer aqueles trezentos metros até a soleira do mercadinho, tropeçando na letra de “No Toca Fita do Meu Carro”, com a boca encharcada de “Que Amor Danado que Arranjei”. Boca entregue ao vazio de uma noite de moças trocadas por Old Eight e Fogo Paulista. Mario de Andrade, que morava no 320, passaria por ele e poetaria: “Meus pés enterrem na rua Aurora, No Paissandu deixem meu sexo”.

Desacordado, mal percebe que ele é o bêbado que se apoiou nos losangos de ferro e por eles desceu até a soleira, se ajeitou como pôde e agora está, para sempre, capturado pelo olho que tudo vê, em todo lugar. 

Uma fiorino para em frente ao mercado e esconde a porta aberta da vista desconfiada do porteiro da garagem em frente. Um garoto passa correndo com um saco plástico na mão, olhos vidrados. O vento seco arrasta a poeira da calçada e irrita os olhos da senhora que vem de cabeça baixa da Santa Ifigênia, sacola na mão – pilhas e lâmpadas e soquetes. Uma lasca de reboco se solta sob o sol. O caixa do mercado ajeita o troco, entediado. Um silêncio entre carros toma o ar por um instante. O leite de coco espera na prateleira a validade expirar. A rua expira e renasce, outra vez aurora.

Bartô se move, geme. O apontador de bicho muda o passo e o rumo, para não dar com ele. Doem as costas, dói o joelho, dói Malena que o proibiu de ser caminhoneiro, depois o deixou, e ele entrou na bebida em lugar de partir para a boleia. Agora é figura fácil na Aurora, ninguém nem se importa, ele jogado de novo no chão pela manhã. A rua é assim. Ele é assim. Tantos são. Não se meta.

O peruano, bem, o peruano fui descobrir trinta metros dali, sem placa na porta, sem qualquer indicação de que ali houvesse um restaurante. Sem número. Descoberto por exclusão: só pode ser ali o 451. Os de São Paulo acabaram indo lá e gostando, é bom e barato, me contam. O Rinconcito Peruano fica escondido no alto de uma escadaria estreita, onde se respira um sonho imigrante de vida nova e bem-aventurança, que contrasta com o registro fotográfico, geográfico, urbano, degradante daquele corpo que, no entanto, ainda agora assombra, não mais a rua, mas a soleira virtual de um mercadinho azul, sem nome, ao lado do hotel da mesma rua Aurora, na altura do 427.
427

Caio Leonardo

(clique no link, vá ao Street View e veja por si)

Rosa, a mais bela flor do Lácio

Guimarães Rosa é o maior escritor de todos os tempos. Eis aí um jeito antipático de começar uma conversa.

Falava-se espanhol com diferentes procedências e qualidades em mais uma mesa composta pelo Ministro Conselheiro Devoto. Era improvável que todos estivessem se entendendo, então aproveitei para fazer umas afirmações vindas daquilo que brotava da terceira taça de vinho depois do espumante de boas-vindas. Vinho acaba rápido com meu discernimento.

rosa com vaqueiros

Naquela noite, éramos bolivianos, canadenses, venezuelanos, argentinos e brasileiros, todos ingredientes do jantar comandado pelo mais célebre Ministro Conselheiro que a terra de Borges y Bioy-Casares já produziu. Fomos todos imersos na casa de pouca luz,  lugar onde sempre me sentia num dos jantares aéreos de Santos Dumont,  servidos lá em cima, no alto do quinto lance de escadas escherianas por suas diagonais vertiginosas, marca da arquitetura da mansão escondida em meio às florestas do Lago Sul, erguida em madeira de lei, ornada de vidro, verde e pássaros da noite.

O espanto, porque é de espanto que se trata, o espanto com a obra de Rosa foi o que, por algum efeito colateral, quis passar à majestática Sra. Paz-Estenssoro, ao terrível Ivan Godoy e à monumental Gabriela Rosso, os ouvidos mais próximos.

Rosa é único, este foi o ponto de partida. Ele inventou uma língua, cuja base é o português falado no sertão de Minas e de Goiás, mas esse português foi desconstruído e desarranjado por meio de recursos a experiências gramaticais, semânticas e fonéticas que Rosa ia buscar na dúzia de idiomas que conhecia, mal ou bem. Isto é o que se diz sempre que se fala dele, nenhuma novidade.

Mas… o que diferencia Rosa de Faulkner? (Neste momento, os três deviam ter-se voltado para o outro lado da mesa, em fuga, mas não…) Faulkner também foi buscar um falar de gente do interior para construir tramas complexas e oferecer personagens de alta densidade dramática, mesmo que num conto. Mas Faulkner recorria à mímese, à imitação. Rosa não imita: ele esconde na sua linguagem uma complexidade de composição inigualada, que no entanto ainda soa como o falar de gente simples. Se Rosa não imita, imito eu o Rosa, nessa canção de boiadeiro sussurrada em curva de rio, desmargem que se encordeia verdejar adentro, ponto de descanso aos cafuis, que no sertão é outro o nome das horas,  e na boca da noite os olhos areiam venosos, na antecipação do muito cedo que é o acordar no descampado, no quebrar da barra, rosto ornado de orvalho lagriluminoso.

Quando se pensa em complexidade e literatura, Joyce é inevitável. Joyce também reinventou o inglês – e inventou complexas estruturas narrativas, com o que Rosa também gostava de brincar, basta ver o que fez em Sagarana, mais especificamente em Matraga e todas as suas referências clássicas escondidas atrás de uma folha, de uma vela, do que ele quisesse. Mas Joyce tramou contra o inglês convencional por cima, enquanto Rosa conspirou por baixo a favor do português. Joyce é abertamente culto e sofisticado. Rosa é o baú rústico em que se esconde o Aleph.

Rosa não é linear, Joyce até que é, ao menos no Ulysses, já que é uma trama contra o tempo, incrustada nas mais famosas 24 horas deitadas em livro. A descontinuidade vertiginosa parece ter surgido com Lawrence Sterne, que está em Joyce, no Machado de Memórias Póstumas, e também em Rosa, no mínimo por sua inapetência pelo corriqueiro, pelo formal, pelo burocrático – e por Belenos!, esse homem era um diplomata…

De onde é que Rosa foi tirar coragem para falar de povo e como povo, com o intento de fazer grande literatura e não literatura regional? Rabelais terá sido o primeiro autor a retratar o povo, o imaginário do povo, as coisas da plebe. Mas retratou isso com uma linguagem rebuscada e fiel ao que via. Rosa não tem linguagem rebuscada, muito menos era fiel ao que via: a experiência roseana é lisérgica, mais que sinestésica.

Depois do Porto Ruby, eu já era valente o quanto seja preciso para sustentar que Rosa é maior que Rabelais, Sterne, Joyce e Faulkner, e só me circundava, me perseguia o medo de que alguma alma sensata e estraga-prazeres viesse podar meu roseiral de ufanidades, jogando o Bardo sobre a mesa como quem grita Truco! Mas eram todos, obviamente menos eu, diplomatas, então Shakespeare não veio em socorro da hierarquia das letras, e passamos, ladies first e belo jantar, para o café curto com lascas de chocolate.

A Argentina abandonou o Brasil quando enviou Guillermo Devoto à China. Sua ida pôs fim àquela secreta filial do Tortoni e deixou a muitos sem ter onde recusar um mau charuto com o apoio auto-irônico do anfitrião.

Caio Leonardo
18.10.2008

Olhos Serenos da África

Sunset-Giraffe

Na sala de estar do casarão da rua Pero Corrêa, Jonas, o prefeito, e Gabriel Teixeira, o diretor do Horto Florestal, tratam das coisas da política da São Vicente de 1969. Talvez falem da pressão sobre os ferroviários; da guerrilha no Vale do Ribeira, ali pegado; da cassação de mais algum vereador; ou ainda do ambiente na distante Brasília, capital tão nova e já testemunha de uma renúncia, de um golpe e de um golpe dentro de golpe. Tanta coisa. Os dois senhores falam e falam, de assuntos que adultos falam na sala de estar, Gabriel Teixeira sentado no sofá de couro e Jonas na poltrona, fumando Pall Mall, influência de seus tempos paulistanos de rua Maranhão e Cultura Inglesa. Quatro maços por dia. Jonas oferece ao amigo um vermouth, que eu, anos depois, porém ainda novo demais, vou beber escondido, furtando um gole ou outro da garrafa no carrinho de madeira que então servirá de bar na Casa Nova, da avenida Presidente Wilson, 294. Jonas fazia um bico divertido ao dizer vermouth. Quando sozinho na sala de jantar da Casa Nova, vou gostar dos selos dourados, das bandeiras que compõem o rótulo – vou gostar do nome, que saberei ler: “Martini & Rossi”.

Mas na sala de estar onde estão Jonas e Gabriel Teixeira, eu ainda não sei ler e estou entretido com alguma coisa muito importante debaixo da mesa: os desenhos no tapete, o barulho da unha raspando o tapete, o cheiro de pó e areia, cheiro de tapete de casa de praia. Disfarço – e espero a hora de me transformar.

Ali agachado debaixo da mesa, a conversa não tem fim. Eu gosto de tomar o café das visitas depois que as visitas vão embora. O café na xícara fica doce e morninho, aquele açúcar todo lá no fundo, preto ou amarelo bem escuro, que é tudo o que resta quando as visitas vão embora. Eu não quero ainda que o seo Gabriel Teixeira vá embora. Eu ainda não me transformei. E quando eu me transformar, ele vai ter que me prometer de pé junto.

A madeira da mesa é fria de um jeito bom, que em São Vicente faz muito calor. A madeira faz uns nós, fica gorda, depois quadrada, gostoso de sentir com a mão. Eu então moro em São Vicente, na rua Pero Corrêa, de fronte ao Zé Albano. Eu ganhei o terceiro lugar no campeonato de taco lá na casa do Zé Albano, eu e o Bando, mas fui eu que mandei a bola lá no Interpraias, que é o prédio que ‘tão construindo do lado da minha casa, que fica o lado de lá da rua onde eu moro, se Você estiver na casa do Zé Albano em 1969.

foto: Lucio Kodato
foto: Lucio Kodato

A Tata ‘tá me procurando, eu acho. Hora de me esconder aqui debaixo da mesa, que é diferente de ficar debaixo da mesa. Escondido ninguém me vê. Eu vejo o sapato do seo Gabriel Teixeira mexendo pra lá e pra cá, vejo a voz gorda dele e os pés se mexendo, as pernas dele esticadas e os sapatos batendo as pontas, que engraçado. De pé junto, ele vai prometer. Não é hora de me transformar, que a Tata vai me ver. Ela fala com o papai e faz barulho de xícara e pires e de colher, mas nem me vê – eu estou invisível. Ela bem que falou Seo Jonas, o senhor viu o Nado por aí? Identidade secreta, ela nem sabe meu nome de verdade. Eu ri. Eu ri porque ela não me viu. O papai fala grosso, com a voz grossa dele de homem. Ele fala baixo e devagar. Voz de prefeito, de nem te ligo pra Tata, que quer saber é de mim.

Eu tinha ido ao zoológico, que é igual ao Horto, mas lá no horto tem a pedreira que toca sirene e depois vem a explosão, sempre às onze horas. A gente ouve o barulho das pedras de vez em quando, mesmo a pedreira sendo lá longe, pra lá da vila Margarida, pra trás do horto. No horto tem árvore e jardim, como no zoológico, mas no horto não tem assim bicho como no Zoológico. Eu vi cobra, não gostei. Eu vi macaco, que eu gostei. Vi aranha, mas aranha eu já tinha visto. Tem aranha no porão da garagem que fica debaixo da seringueira. Não assim debaixo da seringueira: debaixo dos galhos da seringueira, que vão até o céu, até mais alto que o teto da casa.

A casa tem a parte debaixo, onde fica a cozinha e a sala e o papai e o seo Gabriel Teixeira. E a casa tem lá em cima, onde fica o meu quarto e o banheiro e o quarto de todo mundo e o quarto do vovô. Então, a seringueira vai mais alto que o teto do quarto do vovô que é lá no fim do corredor. Debaixo dos galhos da seringueira tem um quarto que é separado da casa, mas não é outra casa, é a nossa casa ainda, mas pra lá no jardim. Debaixo desse quarto tem o porão e dentro do porão tem a gente que se esconde lá pra brincar de detetive.

A Leila que vai primeiro. Ela que faz a carteirinha do clube. Quem não tem carteirinha não entra. A gente entra de costas, se arrastando assim pelo buraco. Antes, o Bando tira a grade de ferro que é pesada, encosta ela na parede e aí a gente se agacha um de cada vez e entra de costas, se arrastando. A Leila põe jornal porque é muito sujo lá no porão, e é escuro, também. Claro, é o porão, oras. Porão é escuro. A gente fica de costas no porão em cima da terra. Tem um monte de pedrinha que arranha as costas da gente e o jornal faz um barulho quando rasga de tanto a gente escorregar sobre ele pra entrar no porão escuro. Então, a gente é detetive e quer saber onde tem mais coisa do Hitler. Achado não é roubado.

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O Hitler é o homem que ‘tava no retrato que a Laís encontrou quando a gente descobriu o porão. Foi assim: não podia entrar naquele quarto, mas a gente entrou. Bem quietinho. Se fosse pra não entrar mesmo, não proibiam. Proibiu, já viu. Foi todo mundo e o chão afundou e a gente descobriu o porão e o papai descobriu que a gente ‘tava lá. Embaixo, entre o piso de madeira, podre, podre, e o chão do porão, o papai depois encontrou duas caixas de latão bem grandes, que depois serviram pra guardar de tudo lá em casa, mas quando o papai encontrou as caixas estavam cheias de livros e mais livros. Meu pai gostava muito de livros, mas não gostou nadinha daqueles que estavam ali. Junto também encontraram umas garrafas grandes assim, que o papai também mandou jogar fora. Minha mãe falou que era uma pena, que era vinho branco alemão, tudo era alemão. É alemão, acho que alguém cochichou, assustado. Com esse monte de coisas suspeitas e perigosas ali, é claro que todo mundo virou agente secreto e queria entrar no porão pra investigar.

A casa era dum alemão, a casa onde eu moro na rua Pero Corrêa, na rua onde fica o posto de gasolina do seo Albano, que é pai do Zé Albano. A gente ia ao posto do seo Albano consertar a bicicleta, só que eu não tinha bicicleta, nem o Bando, nem a Leila, a gente não, mas a turma do Zé Albano tinha. Tinha uma banheira e tinha o borracheiro que sempre andava de chinelo e short e camiseta regata, sempre com uma ponta de cigarro na boca, sempre quieto. Tinha fotos no canto onde ficava a banheira, que ficava com água pro borracheiro ver onde tinha furado o pneu. Tinha mulher pelada ali.

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A gente perdeu um jogo, mas ganhou o outro, então ficou em terceiro, eu e o Bando, no campeonato de taco na casa do Zé Albano. O Bando nunca acertava a bola de tênis que era bem velha e soltava uns pelos e parecia que tinha cabelo, feito o de surfista, parafinado, comprido, amarelo quase verde, meio duro, como o do Marcelo. A bola girava no ar quando alguém acertava ela com o taco, e então era uma correria. A outra dupla começava a gritar pra pegar a bola e a dupla que tinha batido na bola ia lá e cruzava os tacos, gritando e correndo, contando os pontos e vendo se alguém já tinha pegado a bola, que o importante, o importante mesmo, o importante é não ser queimado, que é quando o outro vai lá e joga a bola em você e, se você estiver com o taco fora da casinha, você ‘tá queimado.

Eu não me lembro do retrato do Hitler, mas acho que sei que era velho velho, mais velho que o retrato do vovô. O vovô come banana escondido no quarto dele lá em cima, no fim do corredor. O Bando ‘tá na escola e o Xande é muito pequeno, é uma criancinha. Ele quebrou o braço. Eu quebrei o dente. Foi a Laís e a Leila, mas elas disseram pra eu não contar, senão eu ia ver. Doeu, mas passou. Então eu contei, ‘to pouco ligando. Elas gostam de passar rasteira, depois falam Que bonitinho!, eu lá no chão, chorando. Que bonitinho.

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Pronto, a Tata saiu e os pés do seo Gabriel Teixeira são os pés do monstro. É agora, tá na hora de eu me transformar:

__ Um, dois e já! Superómen!

__ Filho, sem gritar.

__ Você é o Super-homem? – as mãos do Gabriel Teixeira perguntam, oferecendo colo. Mas aquelas garras não vão me derrotar!

Eu rio sério, que eu já me transformei, então eu vou pra cima do Gabriel Teixeira, que é um monstro muito grande que eu tenho que derrotar.

__ Leonardo!

Depois de vários socos potentes desferidos contra o monstro inimigo, está na hora de negociar a rendição. Dele.

__ Seo Gabriel Teixeira, o senhor me dá uma girafa?

__ Uma girafa?

__ É. Eu ganhei, então o senhor me dá uma girafa? Ela vem da África. Eu sei dar comida pra ela. Eu pego um pratinho de lata, que não quebra, e ponho lá na janela do meu quarto, e ela vai lá e come. Eu cuido dela.

__ Você cuida?

__ Cuido.

__ Então, vou te dar a girafa, sim.

__ Promete!

__ Prometo.

__ Pé junto.

__ Prometo.

De lá da cozinha, a Tata vem acudir o pobre monstro espancado.

__Nado, vem pra cá, menino! Xispa! Já pra fora – a voz da Tata é rouca e, quando ela fica brava, eu apanho.

Eu vou lá pra cozinha com a Tata. Mamãe ‘ta trabalhado na Secretaria do Menor. Aí, eu saio pro quintal e vou brincar no quintal com a Fly ou com os patos ou com os coelhos. A Fly é linda. E eu gosto mesmo é da casinha dela, que é verde e tem uma porta meio redonda. O japonês amigo da Ciça, minha prima, ‘tava lá em casa um dia e ele tem uma máquina e tirou foto da gente lá no quintal. Eu sentei na porta da casa da Fly, mas a Fly não saiu na fotografia, porque o Lucio Kodato tinha medo de pastor alemão, eu acho. Livro alemão, vinho alemão, pastor alemão, fotógrafo japonês. Que história!

Tem uma pitangueira perto da parede em frente à casa da Fly. Ela dá um monte de pitanga que às vezes é muito azeda, muito azeda, mas aí tem umas que são doces. Eu nunca sei, só depois de experimentar. Os galhos da pitangueira são macios, mas o tronco e os galhos da seringueira têm uns cascos secos que se soltam e machucam se a gente não sabe trepar direito. Machuca a mão, se a gente sobe rápido também. Eu gosto de trepar na pitangueira e tenho medo de trepar na seringueira, mas todo mundo trepa na seringueira, porque ela é mais importante. Criança brinca na pitangueira, os maiores na seringueira, mas eu quero ser como os maiores, que eu sou supererói e tudo, então eu trepo na seringueira, mas só até o terceiro galho – a Leila e a Laís sobem até lá em cima. O Bando, também. O Zé Albano vai mais alto, mas também o pai dele não mora na nossa casa, mora na casa dele, do outro lado da rua. Queria ver ele trepar na seringueira na casa dele. Queria ver. Aposto.

Dou a volta na casa correndo. Vou até o portão, olho a rua. Ainda não tem jambolão, que é a melhor coisa do mundo. Eu corro e corro. Aposto corrida até lá atrás e levo um susto com o latido da Fly. Dou um tapa no focinho dela. Não é nada fácil dar um tapa no focinho da Fly, ela é muito maior que eu. Mas eu tenho superpoderes. Fui lá, levantei a mão até alcançar o nariz dela e dei um tapa, porque ela me assustou. Ela espirra ou coisa assim e vai embora, sacudindo daquele jeito dela que parece que tá dançando, toctoctoc nas pedras perto do laguinho verde-musgo onde ficam os patos. A casa é imensa, mas eu consigo ir até o muro de trás numa corrida só. Aí dói aqui do lado, mas só que eu já ganhei, pode doer.

Cansei. Sento nos degraus da escadinha que sobe pro quarto do alemão, porta trancada. Pego do chão umas pedras e jogo bolinha-de-gude com elas, que nem brilham nem são azuis ou verdes, mas são azuis e verdes e brilham enquanto jogo. Olho pra cima e vejo a janela do quarto do vovô e a janela do quarto dos meninos, que é o meu quarto. Desenho no ar direitinho a altura da janela e o tamanho do pescoço da girafa. Dá, sim. É só a Tata fazer aveia com açúcar, e eu ponho num prato que não quebra, pra mamãe não brigar, e aí a girafa vem bem devagarinho, bem mansa do jeito dela, com aqueles olhos tristes de quem tem pescoço grande. Pescoço onde, hoje, enxergo majestade e uma mudez compassiva com a vulgaridade em volta; onde, hoje, enxergo seu pelo ornado de ouro e bronze, anéis de bronze sobre leito de ouro; onde, hoje, ouço o trotar de patas que são bengalas de âmbar – bengalas menos infinitas apenas que o mastro de onde pende aquela bandeira de paz, que é o seu rosto alongado e dócil, de olhar sereno, languidez quase feminina numa altivez de varão: onde, hoje percebo,  projeto a silhueta retilínea em corpo e em ato que foi meu pai, espelho e caminho a perseverar em mim.

Caio Leonardo
primavera de 2012/primavera de 2013