Olhos Serenos da África

Sunset-Giraffe

Na sala de estar do casarão da rua Pero Corrêa, Jonas, o prefeito, e Gabriel Teixeira, o diretor do Horto Florestal, tratam das coisas da política da São Vicente de 1969. Talvez falem da pressão sobre os ferroviários; da guerrilha no Vale do Ribeira, ali pegado; da cassação de mais algum vereador; ou ainda do ambiente na distante Brasília, capital tão nova e já testemunha de uma renúncia, de um golpe e de um golpe dentro de golpe. Tanta coisa. Os dois senhores falam e falam, de assuntos que adultos falam na sala de estar, Gabriel Teixeira sentado no sofá de couro e Jonas na poltrona, fumando Pall Mall, influência de seus tempos paulistanos de rua Maranhão e Cultura Inglesa. Quatro maços por dia. Jonas oferece ao amigo um vermouth, que eu, anos depois, porém ainda novo demais, vou beber escondido, furtando um gole ou outro da garrafa no carrinho de madeira que então servirá de bar na Casa Nova, da avenida Presidente Wilson, 294. Jonas fazia um bico divertido ao dizer vermouth. Quando sozinho na sala de jantar da Casa Nova, vou gostar dos selos dourados, das bandeiras que compõem o rótulo – vou gostar do nome, que saberei ler: “Martini & Rossi”.

Mas na sala de estar onde estão Jonas e Gabriel Teixeira, eu ainda não sei ler e estou entretido com alguma coisa muito importante debaixo da mesa: os desenhos no tapete, o barulho da unha raspando o tapete, o cheiro de pó e areia, cheiro de tapete de casa de praia. Disfarço – e espero a hora de me transformar.

Ali agachado debaixo da mesa, a conversa não tem fim. Eu gosto de tomar o café das visitas depois que as visitas vão embora. O café na xícara fica doce e morninho, aquele açúcar todo lá no fundo, preto ou amarelo bem escuro, que é tudo o que resta quando as visitas vão embora. Eu não quero ainda que o seo Gabriel Teixeira vá embora. Eu ainda não me transformei. E quando eu me transformar, ele vai ter que me prometer de pé junto.

A madeira da mesa é fria de um jeito bom, que em São Vicente faz muito calor. A madeira faz uns nós, fica gorda, depois quadrada, gostoso de sentir com a mão. Eu então moro em São Vicente, na rua Pero Corrêa, de fronte ao Zé Albano. Eu ganhei o terceiro lugar no campeonato de taco lá na casa do Zé Albano, eu e o Bando, mas fui eu que mandei a bola lá no Interpraias, que é o prédio que ‘tão construindo do lado da minha casa, que fica o lado de lá da rua onde eu moro, se Você estiver na casa do Zé Albano em 1969.

foto: Lucio Kodato
foto: Lucio Kodato

A Tata ‘tá me procurando, eu acho. Hora de me esconder aqui debaixo da mesa, que é diferente de ficar debaixo da mesa. Escondido ninguém me vê. Eu vejo o sapato do seo Gabriel Teixeira mexendo pra lá e pra cá, vejo a voz gorda dele e os pés se mexendo, as pernas dele esticadas e os sapatos batendo as pontas, que engraçado. De pé junto, ele vai prometer. Não é hora de me transformar, que a Tata vai me ver. Ela fala com o papai e faz barulho de xícara e pires e de colher, mas nem me vê – eu estou invisível. Ela bem que falou Seo Jonas, o senhor viu o Nado por aí? Identidade secreta, ela nem sabe meu nome de verdade. Eu ri. Eu ri porque ela não me viu. O papai fala grosso, com a voz grossa dele de homem. Ele fala baixo e devagar. Voz de prefeito, de nem te ligo pra Tata, que quer saber é de mim.

Eu tinha ido ao zoológico, que é igual ao Horto, mas lá no horto tem a pedreira que toca sirene e depois vem a explosão, sempre às onze horas. A gente ouve o barulho das pedras de vez em quando, mesmo a pedreira sendo lá longe, pra lá da vila Margarida, pra trás do horto. No horto tem árvore e jardim, como no zoológico, mas no horto não tem assim bicho como no Zoológico. Eu vi cobra, não gostei. Eu vi macaco, que eu gostei. Vi aranha, mas aranha eu já tinha visto. Tem aranha no porão da garagem que fica debaixo da seringueira. Não assim debaixo da seringueira: debaixo dos galhos da seringueira, que vão até o céu, até mais alto que o teto da casa.

A casa tem a parte debaixo, onde fica a cozinha e a sala e o papai e o seo Gabriel Teixeira. E a casa tem lá em cima, onde fica o meu quarto e o banheiro e o quarto de todo mundo e o quarto do vovô. Então, a seringueira vai mais alto que o teto do quarto do vovô que é lá no fim do corredor. Debaixo dos galhos da seringueira tem um quarto que é separado da casa, mas não é outra casa, é a nossa casa ainda, mas pra lá no jardim. Debaixo desse quarto tem o porão e dentro do porão tem a gente que se esconde lá pra brincar de detetive.

A Leila que vai primeiro. Ela que faz a carteirinha do clube. Quem não tem carteirinha não entra. A gente entra de costas, se arrastando assim pelo buraco. Antes, o Bando tira a grade de ferro que é pesada, encosta ela na parede e aí a gente se agacha um de cada vez e entra de costas, se arrastando. A Leila põe jornal porque é muito sujo lá no porão, e é escuro, também. Claro, é o porão, oras. Porão é escuro. A gente fica de costas no porão em cima da terra. Tem um monte de pedrinha que arranha as costas da gente e o jornal faz um barulho quando rasga de tanto a gente escorregar sobre ele pra entrar no porão escuro. Então, a gente é detetive e quer saber onde tem mais coisa do Hitler. Achado não é roubado.

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O Hitler é o homem que ‘tava no retrato que a Laís encontrou quando a gente descobriu o porão. Foi assim: não podia entrar naquele quarto, mas a gente entrou. Bem quietinho. Se fosse pra não entrar mesmo, não proibiam. Proibiu, já viu. Foi todo mundo e o chão afundou e a gente descobriu o porão e o papai descobriu que a gente ‘tava lá. Embaixo, entre o piso de madeira, podre, podre, e o chão do porão, o papai depois encontrou duas caixas de latão bem grandes, que depois serviram pra guardar de tudo lá em casa, mas quando o papai encontrou as caixas estavam cheias de livros e mais livros. Meu pai gostava muito de livros, mas não gostou nadinha daqueles que estavam ali. Junto também encontraram umas garrafas grandes assim, que o papai também mandou jogar fora. Minha mãe falou que era uma pena, que era vinho branco alemão, tudo era alemão. É alemão, acho que alguém cochichou, assustado. Com esse monte de coisas suspeitas e perigosas ali, é claro que todo mundo virou agente secreto e queria entrar no porão pra investigar.

A casa era dum alemão, a casa onde eu moro na rua Pero Corrêa, na rua onde fica o posto de gasolina do seo Albano, que é pai do Zé Albano. A gente ia ao posto do seo Albano consertar a bicicleta, só que eu não tinha bicicleta, nem o Bando, nem a Leila, a gente não, mas a turma do Zé Albano tinha. Tinha uma banheira e tinha o borracheiro que sempre andava de chinelo e short e camiseta regata, sempre com uma ponta de cigarro na boca, sempre quieto. Tinha fotos no canto onde ficava a banheira, que ficava com água pro borracheiro ver onde tinha furado o pneu. Tinha mulher pelada ali.

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A gente perdeu um jogo, mas ganhou o outro, então ficou em terceiro, eu e o Bando, no campeonato de taco na casa do Zé Albano. O Bando nunca acertava a bola de tênis que era bem velha e soltava uns pelos e parecia que tinha cabelo, feito o de surfista, parafinado, comprido, amarelo quase verde, meio duro, como o do Marcelo. A bola girava no ar quando alguém acertava ela com o taco, e então era uma correria. A outra dupla começava a gritar pra pegar a bola e a dupla que tinha batido na bola ia lá e cruzava os tacos, gritando e correndo, contando os pontos e vendo se alguém já tinha pegado a bola, que o importante, o importante mesmo, o importante é não ser queimado, que é quando o outro vai lá e joga a bola em você e, se você estiver com o taco fora da casinha, você ‘tá queimado.

Eu não me lembro do retrato do Hitler, mas acho que sei que era velho velho, mais velho que o retrato do vovô. O vovô come banana escondido no quarto dele lá em cima, no fim do corredor. O Bando ‘tá na escola e o Xande é muito pequeno, é uma criancinha. Ele quebrou o braço. Eu quebrei o dente. Foi a Laís e a Leila, mas elas disseram pra eu não contar, senão eu ia ver. Doeu, mas passou. Então eu contei, ‘to pouco ligando. Elas gostam de passar rasteira, depois falam Que bonitinho!, eu lá no chão, chorando. Que bonitinho.

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Pronto, a Tata saiu e os pés do seo Gabriel Teixeira são os pés do monstro. É agora, tá na hora de eu me transformar:

__ Um, dois e já! Superómen!

__ Filho, sem gritar.

__ Você é o Super-homem? – as mãos do Gabriel Teixeira perguntam, oferecendo colo. Mas aquelas garras não vão me derrotar!

Eu rio sério, que eu já me transformei, então eu vou pra cima do Gabriel Teixeira, que é um monstro muito grande que eu tenho que derrotar.

__ Leonardo!

Depois de vários socos potentes desferidos contra o monstro inimigo, está na hora de negociar a rendição. Dele.

__ Seo Gabriel Teixeira, o senhor me dá uma girafa?

__ Uma girafa?

__ É. Eu ganhei, então o senhor me dá uma girafa? Ela vem da África. Eu sei dar comida pra ela. Eu pego um pratinho de lata, que não quebra, e ponho lá na janela do meu quarto, e ela vai lá e come. Eu cuido dela.

__ Você cuida?

__ Cuido.

__ Então, vou te dar a girafa, sim.

__ Promete!

__ Prometo.

__ Pé junto.

__ Prometo.

De lá da cozinha, a Tata vem acudir o pobre monstro espancado.

__Nado, vem pra cá, menino! Xispa! Já pra fora – a voz da Tata é rouca e, quando ela fica brava, eu apanho.

Eu vou lá pra cozinha com a Tata. Mamãe ‘ta trabalhado na Secretaria do Menor. Aí, eu saio pro quintal e vou brincar no quintal com a Fly ou com os patos ou com os coelhos. A Fly é linda. E eu gosto mesmo é da casinha dela, que é verde e tem uma porta meio redonda. O japonês amigo da Ciça, minha prima, ‘tava lá em casa um dia e ele tem uma máquina e tirou foto da gente lá no quintal. Eu sentei na porta da casa da Fly, mas a Fly não saiu na fotografia, porque o Lucio Kodato tinha medo de pastor alemão, eu acho. Livro alemão, vinho alemão, pastor alemão, fotógrafo japonês. Que história!

Tem uma pitangueira perto da parede em frente à casa da Fly. Ela dá um monte de pitanga que às vezes é muito azeda, muito azeda, mas aí tem umas que são doces. Eu nunca sei, só depois de experimentar. Os galhos da pitangueira são macios, mas o tronco e os galhos da seringueira têm uns cascos secos que se soltam e machucam se a gente não sabe trepar direito. Machuca a mão, se a gente sobe rápido também. Eu gosto de trepar na pitangueira e tenho medo de trepar na seringueira, mas todo mundo trepa na seringueira, porque ela é mais importante. Criança brinca na pitangueira, os maiores na seringueira, mas eu quero ser como os maiores, que eu sou supererói e tudo, então eu trepo na seringueira, mas só até o terceiro galho – a Leila e a Laís sobem até lá em cima. O Bando, também. O Zé Albano vai mais alto, mas também o pai dele não mora na nossa casa, mora na casa dele, do outro lado da rua. Queria ver ele trepar na seringueira na casa dele. Queria ver. Aposto.

Dou a volta na casa correndo. Vou até o portão, olho a rua. Ainda não tem jambolão, que é a melhor coisa do mundo. Eu corro e corro. Aposto corrida até lá atrás e levo um susto com o latido da Fly. Dou um tapa no focinho dela. Não é nada fácil dar um tapa no focinho da Fly, ela é muito maior que eu. Mas eu tenho superpoderes. Fui lá, levantei a mão até alcançar o nariz dela e dei um tapa, porque ela me assustou. Ela espirra ou coisa assim e vai embora, sacudindo daquele jeito dela que parece que tá dançando, toctoctoc nas pedras perto do laguinho verde-musgo onde ficam os patos. A casa é imensa, mas eu consigo ir até o muro de trás numa corrida só. Aí dói aqui do lado, mas só que eu já ganhei, pode doer.

Cansei. Sento nos degraus da escadinha que sobe pro quarto do alemão, porta trancada. Pego do chão umas pedras e jogo bolinha-de-gude com elas, que nem brilham nem são azuis ou verdes, mas são azuis e verdes e brilham enquanto jogo. Olho pra cima e vejo a janela do quarto do vovô e a janela do quarto dos meninos, que é o meu quarto. Desenho no ar direitinho a altura da janela e o tamanho do pescoço da girafa. Dá, sim. É só a Tata fazer aveia com açúcar, e eu ponho num prato que não quebra, pra mamãe não brigar, e aí a girafa vem bem devagarinho, bem mansa do jeito dela, com aqueles olhos tristes de quem tem pescoço grande. Pescoço onde, hoje, enxergo majestade e uma mudez compassiva com a vulgaridade em volta; onde, hoje, enxergo seu pelo ornado de ouro e bronze, anéis de bronze sobre leito de ouro; onde, hoje, ouço o trotar de patas que são bengalas de âmbar – bengalas menos infinitas apenas que o mastro de onde pende aquela bandeira de paz, que é o seu rosto alongado e dócil, de olhar sereno, languidez quase feminina numa altivez de varão: onde, hoje percebo,  projeto a silhueta retilínea em corpo e em ato que foi meu pai, espelho e caminho a perseverar em mim.

Caio Leonardo
primavera de 2012/primavera de 2013

4 comentários em “Olhos Serenos da África”

  1. Caio , Nado, Leonardo .
    Vc tem, realmente, o dom relatar com imensa riqueza de detalhes não só a sua infância. Mas tudo que escreves.
    Lá atrás cheguei mesmo a ouvir o estouro da pedreira as 11 hs . Um barulhão !!!! Éramos praticamente vizinhos em S Vicente. E a linha da máquina então, passava pertinho de caaa. Quanto tempo. Tempo bom. Praia quase que na porta.
    Adorei relembrar.

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  2. Oi Nado,muito legal sua historia.Pena que nessa época eu ainda não te conhecia mas os detalhes do local me colocaram lá.Morei no Interpraias e lembro de sua casa na Presidente Wilson.Qualquer dia conte alguma passagem voce já mais velho.Um abraço.

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  3. Nado, que saudades, você escreve muito bem. Adorei, nos conhecemos um pouco depois, na casa da Avenida Presidente Wilson, encontrei você de novo.
    Beijos,
    Renatinha

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