O Baile na Rua Aurora

BartôByHopper

Acho que foi o Sandor Ney, ou talvez o Georges Jazzar, mas alguém jogou no grupo de discussão a novidade de que tinha descoberto um bom restaurante peruano na improvável rua Aurora, registrada em verso, prosa, canção e boletins de ocorrência. Começou um alvoroço. Não podia ser aquela  rua Aurora, piroca dentro, piroca fora. Mas em que altura? Perto do Bar Leo? É seguro? Fica na Boca do Lixo? Ainda existe a Boca do Lixo?

Enquanto eles discutiam isso em São Paulo, eu, de Brasília, comecei um passeio vertiginoso via Google Street View. Apeei meu cavalo virtual na esquina da avenida Rio Branco com a Aurora e comecei a descê-la em direção à Vieira de Carvalho, que é o que se poderia chamar de “área nobre” dali. Foi, mesmo, um dia. Ali surgiu o Rubaiyat, ali ficava o mais antigo restaurante de São Paulo.

Mas no hoje do meu passeio por aquela lente panóptica, a Aurora apresentava suas velhas credenciais logo na esquina com a Rio Branco: um American Bar, senha para inferninho. Sigo adiante e, passadas umas portas sem pistas, mas que escondem muita história, surge no nº 427 um hotel talvez chamado Lugus (difícil dizer, a imagem da placa é aguardentemente distorcida). O hotel é vizinho de uma venda, um mercadinho sem nome nem número, de parede azul, com duas portas, uma delas aberta, já são 9h30 ou 10 da manhã no instantâneo que me guia. Para dentro da porta aberta, movimento, clientes, objetos, caixa registradora, comércio. Para dentro da porta fechada, por trás de uma cortina de ferro vazada em losangos, uma década de fórmicas, madeiras e ferros empilhados, coisas sem uso esquecidas na sombra, mas visíveis da rua. Meu olhar atravessa a porta de volta para a rua por entre os losangos de ferro e se depara com o que jaz na soleira do mercadinho azul, sem nome, da rua Aurora, sem número.

Naquela soleira, estirado sobre a pedra preta polida típica dos degraus de construções no centro de São Paulo, jaz a figura de um homem de passado violento, ocupação incerta e futuro mais ainda, coberto de blue jeans de corpo e alma, alma alugada para a boêmia.

Sobre os olhos, enormes óculos escuros que remetem a Ray Charles mas num degradante marrom degradê; as canelas exibem meias beiges combinando com o mocassim marrom que faz dele outro Paco perdido no fim de uma noite suja, acolhido pela indiferença do pouco comércio diurno de uma rua que vive da madrugada e seus pecados. O braço direito dele, manga arregaçada, aponta desmaiado para a sarjeta que está a metro e meio, mas inteira dentro dele.

A noite deve ter recebido como um astro aquele alter ego de Bartô Galeno, colete azul escuro de cantor de rádio, de caminhoneiro garboso, garantia de atenção das moças e dos garçons nos shows de strip tease do teatro Orion, na altura do 753. Não deve ter sido fácil percorrer aqueles trezentos metros até a soleira do mercadinho, tropeçando na letra de “No Toca Fita do Meu Carro”, com a boca encharcada de “Que Amor Danado que Arranjei”. Boca entregue ao vazio de uma noite de moças trocadas por Old Eight e Fogo Paulista. Mario de Andrade, que morava no 320, passaria por ele e poetaria: “Meus pés enterrem na rua Aurora, No Paissandu deixem meu sexo”.

Desacordado, mal percebe que ele é o bêbado que se apoiou nos losangos de ferro e por eles desceu até a soleira, se ajeitou como pôde e agora está, para sempre, capturado pelo olho que tudo vê, em todo lugar. 

Uma fiorino para em frente ao mercado e esconde a porta aberta da vista desconfiada do porteiro da garagem em frente. Um garoto passa correndo com um saco plástico na mão, olhos vidrados. O vento seco arrasta a poeira da calçada e irrita os olhos da senhora que vem de cabeça baixa da Santa Ifigênia, sacola na mão – pilhas e lâmpadas e soquetes. Uma lasca de reboco se solta sob o sol. O caixa do mercado ajeita o troco, entediado. Um silêncio entre carros toma o ar por um instante. O leite de coco espera na prateleira a validade expirar. A rua expira e renasce, outra vez aurora.

Bartô se move, geme. O apontador de bicho muda o passo e o rumo, para não dar com ele. Doem as costas, dói o joelho, dói Malena que o proibiu de ser caminhoneiro, depois o deixou, e ele entrou na bebida em lugar de partir para a boleia. Agora é figura fácil na Aurora, ninguém nem se importa, ele jogado de novo no chão pela manhã. A rua é assim. Ele é assim. Tantos são. Não se meta.

O peruano, bem, o peruano fui descobrir trinta metros dali, sem placa na porta, sem qualquer indicação de que ali houvesse um restaurante. Sem número. Descoberto por exclusão: só pode ser ali o 451. Os de São Paulo acabaram indo lá e gostando, é bom e barato, me contam. O Rinconcito Peruano fica escondido no alto de uma escadaria estreita, onde se respira um sonho imigrante de vida nova e bem-aventurança, que contrasta com o registro fotográfico, geográfico, urbano, degradante daquele corpo que, no entanto, ainda agora assombra, não mais a rua, mas a soleira virtual de um mercadinho azul, sem nome, ao lado do hotel da mesma rua Aurora, na altura do 427.
427

Caio Leonardo

(clique no link, vá ao Street View e veja por si)

2 comentários em “O Baile na Rua Aurora”

  1. Caio, o danadinho recanto que nos faz adentrar para devassas aventuras, chama-se Logus, tal qual outro de igual nome, na saudosa Presidente Wilson, onde só residências ali continham. Rua Aurora, passei tem 10 dias por ela, é um mundo invertido e ofuscado. Bons tempos de rapaz, hoje meus olhos cinquentões não a enxergam mais com bela silhueta.

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  2. Olá Caio,morei na rua aurora por 35 anos,ao lado do mercadinho citado no seu texto,no número 439,por 12 anos,e em frente no 460 por 23 anos,apesar do ambiente decadente,essa rua é tudo de bom em termos de mistura de culturas,e figuras que ali transitam.
    O mercado que você comentou é de um casal de chineses,meio brutos,mas muito trabalhadores,e o hotel Lugus agora foi reformado,e esta com um visual mais clean,fizeram uma grande reforma.Quanto ao restaurante Peruano eu conheço somente o dono,mas nunca me aventurei por esse tipo de culinária,mas o movimento só aumenta,vem gente de todos os cantos da cidade comer ali,se não me engano saiu uma matéria sobre ele na vejinha e pipoca gente de todos os cantos da cidade,modernos,descolados,e alguns casais de meia idade!abraços!

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