A Cunha que Emperra a Saída

FIRJAN e FIESP entronizaram Michel Temer hoje, em matéria de página inteira em todos os grandes jornais, assinada pelos respectivos presidentes. Temer foi ungido na posição que já era a sua, a de chefe do Poder Moderador, encargo de Pedro I e II no parlamentarismo do Império.

A unção empresarial de Temer indica o caminho aceitável para o desfecho da atual crise política. Porém, essa porta de saída ainda está emperrada.

O Baixo Clero da Câmara, essa horda de minions em torno do seu malvado chefe, pode até manter-se caninamente dócil aos desígnios de Eduardo Cunha, mas o próprio PMDB não quer um cenário com Dilma fora e esse presidente da Câmara.

O TCU está de armas assestadas contra o Planalto, e jatos impetuosos varrem a cena política, mas num caso e noutro já está evidente que há intocáveis. Com o apoio dado à sua serenidade majestática num momento de desvario político, Temer não cai com Dilma. Mesmo porque nada surgiu contra ele.
Na remota hipótese de Temer cair, Cunha teria 90 dias para chamar eleições. Não ficaria no cargo, mas conduziria o processo eleitoral. Se chamarem eleições, Lula pode voltar como candidato, o que poderia romper de vez o fio que mantém o tecido social lassamente unido. Melhor deixar Temer onde está.
Mas o novo ungido também sabe que assumir com Cunha na presidência da Câmara será a continuação da crise, com o Executivo submetido aos humores de uma Câmara Baixa merecedora de seu cognome.
As conversas em Brasília estão intensas. O Palácio do Jaburu nunca esteve tão frequentado. Tem sido constante o agito de valets diante do gradil palaciano à espera daqueles que conspiram por governabilidade, pela estabilidade politico-institucional e por uma saída equilibrada.
Mas porta emperrada com cunha não se abre.
Caio Leonardo

A Hora do Brasil

O País enfrenta uma crise política grave o bastante para o Parlamento aceitar sacrificar a economia para não se alinhar com o Governo.

O País está sacudido, há muita poeira levantada, muito barulho, muita tensão. É hora de deixar de lado interesses e enxergar o quadro político como ele é.

Agora, importa apenas o movimento das grandes peças. E elas ficaram resumidas a poucas: Temer, Renan, Cunha, cada vez menos Lula. O único movimento relevante de Dilma seria o de sua saída voluntária, numa demonstração de espírito público e compromisso com a democracia – no sentido de não dar azo a uma alternativa de exceção. Nenhum outro partido ou grupo político pode, hoje, interferir decisivamente no deslinde desta crise, senão através do alinhamento com o PMDB.

O País está, de novo, nas mãos do PMDB, como sempre que é preciso manter a estabilidade institucional.

Esta crise deixa claro que eleição é o caminho para o Poder, mas o Poder não é legitimado exclusivamente pelo voto. Lição dolorosa e tardia. É preciso introjetar na consciência política brasileira que, além de pelo voto, a legitimação de um Governo se dá pelo ser responsável (accountable) e eficiente. Mas nenhum Governo é responsável nem eficiente, se não se comunica. Se não se comunica os cidadãos, com suas instâncias internas, com suas bases sociais, partidárias e políticas, e com as outras instâncias de Poder.

Um governo deve deixar claro e comunicar, passo a passo, o diagnóstico que faz do País, que problemas enxerga. Deve construir soluções ouvindo e dialogando com aqueles afetados por tais problemas e construir com eles soluções que otimizem resultados ou mitiguem riscos. Deve comunicar como as soluções serão implementadas, em que tempo e a que custo. Deve comunicar como evoluem as ações para implementar tais soluções e o tempo até o próximo passo. Isso permite, por exemplo, que o cidadão entenda por que não tem SUS na sua cidade, mas também que melhoria chegará para a atenção à sua saúde e em que tempo.

Deixar o cidadão no escuro é trazer a escuridão para si.

Este Governo, se fez, faz ou faria, não comunicou. Ao não comunicar, permitiu que outra narrativa se estabelecesse: a da sua inércia, da sua inépcia, da sua ineficiência, da sua incompetência e da sua arrogância.

Hoje, essa narrativa norteia o entendimento de 71% da população e praticamente de todo o Congresso Nacional. A base governista, na prática – e nos sussurros de corredor – abandonou um Planalto que não cumpre acordos – e não se fala aqui de acordos escusos, mas de acordos em torno do que seja equilibrado ser feito naquele momento, consideradas todas as forças políticas, sociais e econômicas afetadas pela decisão acordada.

Não há governo que se sustente num quadro assim.

Tudo considerado, o que estamos vendo é o processo político de construção de um caminho de transição para um governo de serenamento e reorganização política e econômica.

Esperança é moeda fraca na política, e esta é mais uma opinião sem peso num mar revolto delas, mas custa pouco dizer que é hora de agir com grandeza; que o melhor cenário seria a chefe de Governo informar o Estado da Nação, fazer um balanço do que foi feito e do que está em curso, reconhecer que, embora siga firme em suas convicções do que seja melhor para o Brasil, ela não tem condições políticas de seguir conduzindo o País e assim abrir caminho para a formação de novo governo, sem sobressaltos.

Porém, o cenário mais provável é que, diante de uma plateia irritada com a demora e a postura dos jogadores, aquelas quatro peças pretas ainda precisem de alguns poucos lances para impor cheque-mate às duas últimas brancas, antes de se iniciar novo jogo político – sem que se vire o tabuleiro.

Caio Leonardo

Vitrúvio Revisitado

un-accessibility-logo[Novo Símbolo de Acessibilidade da ONU]

Marcus Vitruvius Pollio não é alguém com ideias fáceis de ultrapassar. Para superá-las, seria preciso mudar (quase) todas as cidades do mundo e (quase) tudo que há nelas.

Vitrúvio foi contemporâneo Júlio César e de Augusto, o césar que elevou Roma ao ponto central em que ainda se encontra no desenho da cultura do Ocidente. Entre 29 a.C. e 23 a.C., depois de ganhar uma pensão do imperador Augusto, Vitrúvio escreveu e lhe dedicou De Architectura, obra em dez volumes que, mais de mil e trezentos anos depois, viria se firmar, pelas mãos de pensadores renascentistas da corte dos Médici, como as bases clássicas não só daquilo que entendemos por arquitetura, mas também do que por engenharia e por urbanismo. Vitrúvio estabeleceu princípios e, mais do que isso, concebeu as proporções que deviam nortear uma construção. Para isso, partiu do corpo humano. Mas não de um corpo qualquer, não da multiplicidade de tipos humanos, mas sim de uma ideia de corpo humano matemática e geometricamente proporcional.

Leonardo da Vinci eternizou esse corpo num desenho facilmente reconhecível ainda hoje. Inserido num círculo e num quadrado que se sobrepõem, aparece um homem de proporções perfeitas, a não ser, talvez, pelo detalhe de exibir quatro pernas e quatro braços, com os quais toca quatro pontos do círculo, que representa o divino/macrocosmos, e quatro pontos do quadrado, que representa a terra/microcosmos. A esse desenho foi dado o merecido nome de “Homem Vitruviano”, o “espelho do universo”. A regra era clara: Todos os elementos de uma construção e de uma cidade deviam seguir a perfeição daquelas proporções – da altura à largura de uma fachada, da posição à proporção dos degraus de uma escada.

Leonardo da Vinci - Uomo vitruviano.jpg

Aquele Leonardo não anteviu a dor de cabeça que esse desenho daria a este Leonardo.

Ao definirem o Homem Vitruviano como a proporção ideal, Vitruvio e Leonardo acabaram por definir igualmente o usuário que todo construtor teria em mente. Toda a variedade da experiência física e sensorial humana ficava ali – e dali para o mundo – reduzida ao esplendor de um corpo único, preciso, idealizado.

Passaram-se outros quinhentos e tantos anos até que tomadores de decisão se dessem conta de que usar o Homem Vitruviano como padrão tinha legado uma cidade excludente, inatingível por muitos daqueles que divergem das proporções clássicas por serem mais altos, mais baixos, mais gordos, com pernas curtas, com braços longos, sem braços, sem aquele pênis, por não ficarem em pé, por não usarem cabelo comprido: de uma forma ou de outra, é bem raro um ser humano de verdade seguir aquelas proporções.

Surgiu daí a noção de acessibilidade: o belo, sólido e útil concebido por Vitrúvio – e recuperado por Leonardo e seus contemporâneos – era inútil para muitos, porque opunha barreiras a seu uso aos que não tocavam de braços e pernas estendidos aqueles quatro pontos do círculo. Mas é compreensível que a ideia de sociedade inclusiva fazia nenhum sentido num Renascimento que convivia com a Inquisição de Torquemada. Só veio fazer sentido no fim da segunda metade do século XX.

Estávamos já em 1980 quando a acessibilidade foi pensada a partir das necessidades de quem portava uma deficiência. Evoluímos para o conceito de desenho universal, que deveria atender todas as incapacidades, ainda que temporárias, como a gravidez, a infância, a velhice – três das muitas proporções esquecidas por Vitruvius.

Se o arquiteto romano circunscrevera a perfeição, a ONU num primeiro momento, circunscreveu a deficiência. Nisso, cometeu o mesmo erro do romano, que foi o de pensar num modelo específico: o símbolo ainda vigente de acessibilidade é aquele que representa uma pessoa em cadeira de rodas dentro, também, de uma circunferência. A cadeira de rodas remete a apenas uma das cinco deficiências básicas.

Pois agora, na metade da segunda década do século XXI, as Nações Unidas divulgam um novo Símbolo Universal de Acessibilidade. Ele retoma, sim, o “Homem Vitruviano”, mas a partir de uma perspectiva completamente outra.

A ONU descarta o modelo centrado numa deficiência específica, a motora, mas não cai na armadilha de buscar abrigar todas as deficiências: o novo símbolo expressa a ideia de um mundo aberto a todos a partir das suas habilidades. Noutras palavras, a ONU aposenta o conceito de deficiência e passa a empregar o conceito de habilidade.

A mudança conceitual é imensa. O desenho (design, se preferirem) pensado com um olhar sobre o cada um pode fazer (habilidade), em vez de um olhar sobre o que não pode fazer (deficiência) permite antever ambientes, objetos, produtos, informações desenhados para atender as variadas formas com que uma pessoa preferirá utilizá-los.

Aquele Leonardo desenhou um homem. O símbolo da ONU representa uma pessoa. E essa pessoa que se move para todos os lados, que está em todos os cantos, que é centro e circunferência, mas não submetido a um mundo quadrado, surge para moldar o terreno – em tantos sentidos – por onde poderá desfilar toda a variedade que marca a experiência de estar vivo.

O Teatro abre suas portas. A senhora J. sobe vaporosamente a escada de mármore à esquerda; o senhor C. prefere conduzir pela sensual rampa sinuosa à direita a sua carrozzina de duas rodas com seis giroscópios. Menos mal que o aplicativo de audiodescrição em tempo real satisfez as exigências feitas por M. A. para dirigir O Rinoceronte. Noite de estreia. O crítico T.J., já está postado na fileira H e liga o prompter transparente com tradução simultânea para linguagem de sinais. A estrela S. espera que ele esteja de bom humor.

Abrem-se as cortinas para um novo espetáculo.

caio Leonardo

4.8.2015