Da Jurisdição à Legisdição

A Comissão Especial da Câmara dos Deputados para o Projeto de Reforma do Código de Processo Civil (CPC) está por entrar em fase de discussão e votação  do parecer elaborado pelo seu ainda então relator-geral, Deputado Sérgio Barradas Carneiro. (Substitutivo Barradas)

A reforma do CPC não é iniciativa isolada. Atualmente, no Congresso Nacional, estão também sendo discutidas reformas do Código Penal, de Defesa do Consumidor, Comercial. Estão em elaboração um novo Código Eleitoral e um Código de Arbitragem, ambos no Senado Federal. É esperado ainda um Código de Mineração.

Esse surto legiferante que o Brasil está vivendo é oriundo em especial do Senado. O que sustenta esse surto é aquilo a que seus variegados defensores chamam de “constitucionalização dos códigos”. A crítica desse processo de constitucionalização é o cerne deste artigo.

Sustento que, por trás da adequação dos códigos à Constituição, está um Judiciário que deixará de interpretar a lei e passará a dizer a lei, o que chamarei aqui de Legisdição, em sentido diametralmente inverso àquele utilizado por Gustavo Zagrebelsky. Enquanto Zagrebelsky o usa para criticar a atuação judicial que apenas repete o que diz o texto da lei, aqui “Legisdição” será usado para definir um Judiciário que não mais faz adequação da norma posta  ao fato, mas sim dispõe o que deva ser a norma para cada fato, mediante jogos de livre interpretação de valores extraídos da leitura que cada julgador faça da Constituição.

O primeiro impacto do trânsito da Jurisdição para a Legisdição será a  a usurpação das atribuições do Poder Legislativo e da sanção presidencial, no que o Judiciário é que, na prática, legislará. No futuro exercício da Legisdição, não importará o que o Legislativo tiver aprovado e o Executivo sancionado. O Judiciário passará a Casa do Direito.

Seus defensores chamam de “Estado Constitucional” aquilo a que chamarei aqui de Ordem da Legisdição. Esses mesmos defensores, e isto consta dos anais dos debates da Comissão Especial do CPC, opõem Estado Constitucional a Estado Democrático de Direito: aquele seria a evolução em relação a este.

 

Porém, há um sério debate a ser travado, antes de qualquer passo na direção da superação do Estado Democrático de Direito para a institucionalização do tal Estado Constitucional.

 

Esse debate deve levar em conta, de saída, o Art. 1º da Constituição Federal, que declara que o Brasil “constitui-se em Estado democrático de direito” Logo em seguida,  o parágrafo único do mesmo Art. 1º estabelece que “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.

 

No Brasil, não elegemos juízes, nem podem os juízes entender que sua investidura confunde-se com o exercício direto do Poder pelo povo. Na Ordem vigente, o Poder Judiciário é exercido e só pode sê-lo mediante o controle pelo Legislativo, que é quem aprova as leis, e pelo Executivo, que é quem os sanciona. De sua parte, o Judiciário controla os demais Poderes mediante o cumprir e o fazer cumprir aquelas leis.

 

Nesse contexto, permitir que o Judiciário defina o que é o Direito a partir de interpretações desconectadas da letra da Lei é criar um desequilíbrio no sistema de checks and balances.

Vejamos agora a redação dada ao art. 1º do Projeto de Reforma do CPC, mantido pelo Substitutivo Barradas:

“Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme as normas e os valores consagrados na Constituição Federa, observando-se as disposições deste código.” (destaques meus)

Pela redação dada ao art. 1º do Projeto, o CPC passa a ser apenas algo a ser “observado”, sendo que a interpretação das normas, porém igualmente dos valores consagrados na  CF bastarão ao julgador para definir o que é o Direito na gestão do processo.

Notem que o foco passa estar no ordenamento, na disciplina e na interpretação da Constituição Federal por parte do juiz: o Judiciário legisdizendo. O CPC será mero detalhe.

Estas ilações feitas aqui não são meras divagações sobre palavras inócuas inscritas na Lei. Embora mais exemplos houvesse no projeto originário do Senado, ainda há corolários  do que consta no Art. 1º. `Por exemplo, no Substitutivo Barradas,  o Art. 120, inciso IV,  autoriza o juiz a dilatar prazos e alterar a ordem de produção de provas; o art. 283, permite ao juiz conceder tutela antecipada de ofício, ou seja, sem um pedido do autor.

Neste ponto, é preciso por em questão o Art. 2º do projeto original, igualmente mantido pelo Substitutivo Barradas:

“Art. 2º Salvo exceções previstas em lei, o processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial.”

 

Comparemos agora esse dispositivo com sua contraparte, naquilo que interessa aqui, no CPC vigente:

 

“Art. 2o Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais.”

 

No processo civil corrente, o juiz é inerte e só age a pedido da parte ou do interessado. No processo civil proposto, a parte (esqueçam o “interessado”) apenas contribui para o começo do processo, tudo o mais cabe ao juiz: definição da distribuição do ônus da prova, tutela antecipada (ex officio), imposição irrecorrível de um amicus curiae e até mesmo intervenção na empresa que não cumprir sua ordem no processo de execução.

 

Esse novo e poderosíssimo juiz decidirá sem que a apelação tenha efeito suspensivo. No CPC vigente, o efeito suspensivo é uma garantia à parte perdedora – não ao autor ou ao réu, mas a quem sucumbe. Uma garantia que se sustenta, de novo, no controle dos atos do Estado: o Estado nunca decide definitivamente, sem antes oferecer uma segunda oportunidade a que o cidadão se defenda. A isto, nem seria preciso lembrar que se dá o nome de Duplo Grau de Jurisdição.

 

Como se vê pelo dito acima, o Duplo Grau não se resume à garantia da segunda oportunidade: é elemento constitutivo do Duplo Grau o efeito suspensivo da decisão do Estado.

 

Tem sido corriqueiro ver-se o Judiciário apresentado como representante da cidadania, o último bastião da demo-cracia. Neste momento do debate em torno do CPC, é preciso lembrar a todos que o Judiciário é Estado e que Estado está em oposição ontológica ao cidadão. E que a Constituição Federal é o instrumento de contenção dos Poderes constituídos, assim como o é toda lei. O princípio da legalidade também é imposto pela Constituição Federal ao Poder Judiciário (Art. 37).

 

Em suma,  a crítica ao excesso de poderes concedidos ao juiz pelo novo CPC parte de sua propensão à: usurpação de Poderes e à subversão do Estado de Direito, no que gerará um Poder Judiciário preponderante sobre os demais Poderes constituídos.

 

O ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, Athos Gusmão Carneiro, em sua sugestão de substitutivo, propõe redação distinta ao art. 1º do novo CPC, idêntica à do atual, em verdade, e que deixa claro o papel jurisdicional do juiz e o lugar do CPC como diploma ordenador do processo. Da mesma forma, deve ser mantido o  Art. 2º do atual CPC.

 

Que essas redações prevaleçam sobre as que constam do Substitutivo Barradas, assim como sejam suprimidos os seus corolários, que se espalham por toda a proposição. Tudo a evitar que se nutram elementos para um desequilíbrio institucional, que torne o Judiciário um Poder acima dos Poderes. Ou, a prevalecer o Substitutivo Barradas (ou a proposição original, enfim), que pelo menos isto se dê mediante o debate explícito sobre o que representa a intentada transição do Estado Democrático de Direito para o Estado Constitucional.

 

Brasília, novembro de 2012

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