A Ilha, o Farol e um Tango

John Donne (1572/1631) é um dos grandes da Inglaterra, poeta metafísico, jovem de mulheres e homem de letras, a quem a educação católica pôs em apuros e a conversão à igreja fundada por Henrique VIII acabou por salvar. Em 1615, após ter-se engraçado com quem não podia, escapou de um triste fim com a ajuda de James I, que o fez ordenar-se anglicano e lhe deu Saint Paul’s Cathedral, para que lá proferisse sermões que marcaram seu tempo, assim como é sua a marca sobre a poesia daquela época e lugar.

“A Valediction: Forbidding Mourning” é para Donne quase um verbete do saboroso Dictionnaire des Idées Reçus, de Flaubert. Podia bem estar lá: John Donne, aquele de “A Valediction…” etc. Mas esse poema tão óbvio quando se pensa em Donne é que traz este verso que é um dos meus favoritos em toda a língua inglesa: “dull sublunary lovers love”.

Há uma musicalidade ondulante em sua escansão que nos leva a um forte pico logo em sub/LU/nary, para depois nos deixar rolar pela encosta de um vale que desce até o amor que descansa depois do gozo. Esse verso é a imagem sonora mesma do ato sexual, cujo caráter físico é ao que Donne quer se referir, quando fala do tedioso amor dos amantes sublunares, para ele mera necessidade de presença, de olhos, lábios e mãos.

Entretanto, o amor dele, poeta metafísico, é outro: a distância não é quebra, é expansão, por serem os dois uma alma só. A imagem a que recorre para descrever esse outro amor é a de dois amantes tão unos como as pontas de um só compasso:

“Thy firmnes drawes my circle just, And makes me end, where I begunne”.

Em Meditation XVII, surge outra passagem lugar-comum, por ter sido a fonte do título de uma das grandes obras de Hemingway: “No man is an island, entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main. (…) [A]nd therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.” Numa tradução livre, “Nenhum homem é uma ilha, inteiro de si mesmo; todo homem é um pedaço do continente, uma parte do todo; então não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”

É como dizer: nenhum homem é idiota. Idiota, etimologicamente, é aquele que vive num mundo próprio, ensimesmado – “idios”, pessoal, próprio, singular; “otes”, habitante. O “habitante de si mesmo”. O vocábulo é muito mais interessante e rico nessa acepção, do que nas suas derivações.

Quem muito se fecha passa a ser difícil de ser compreendido – pelo Outro. A dificuldade de compreensão é de quem observa, e não do observado. Mas quem leva a fama é justamente o observado, cuja idiotice, ou ensimesmamento, resultou nos desvãos da semântica em sinônimo de “pouca inteligência”.

Nalgum momento na vida dos “idiotas”, o isolamento que os define deve ter ferido alguma suscetibilidade, e terá sido a partir daí que o termo passou a ter, por despeito, o sentido pejorativo. Ora, se narciso acha feio o que não é espelho, então o isolamento é a feiúra no mundo dos homens-continentes, onde é inconcebível o homem-ilha. No man is an island, case closed.

O solipsismo (esse estado mental a que aludo com freqüência, que se resume na impressão de que “só eu existo no mundo, não existe o Outro”) está entre os estágios mais primários da compreensão do ambiente em que se vive. Começa-se a superá-lo por volta da segunda metade dos primeiros dez anos de vida. Pode-se sustentar, com alguma boa vontade, que a conduta “idiota”, na “pura acepção da palavra”, é um passo na evolução para além do solipsismo, mas que ainda mantém um pé nele. O idiota já deixou de achar que só ele existe, mas preferiu viver no seu próprio mundo. Porém, ver como idiota, no sentido pejorativo, aquele que age como Outro, que age com vontade própria, com rumo próprio, que não aquele rumo que se esperava dele, é negar ao Outro o ser Outro, é querer que o mundo se amolde à sua vontade. Viva e deixe viver.

Siddhartha viveu todos os mundos, assim como Ulisses viveu todas as experiências humanas. Um a Leste, outro a Oeste: os dois, mitos fundadores de civilizações. Ulisses, o homem-continente, que arriscou a vida por seu povo e por sua esposa; já Siddharta, o homem-ilha, que viveu entre o povo, que reinou sobre o povo, que se entregou ao amor carnal, e que ao fim de sua jornada voltou-se para si mesmo e em si mesmo encontrou o sentido para sua existência. Dois itinerários tortuosos, dois destinos distintos. Qual o melhor, isolamento ou gregarismo, com trocadilhos?

Siddhartha, acrescento logo, mesmo na culminância do nirvana, seguiu vivendo em sociedade, porque seu corpo lá estava, nalgum ponto da Índia – portanto jamais foi totalmente ilha. Que atitude tinham os demais diante dele – além da veneração que ele já merecia em vida? Teriam querido Siddhartha para si?

Querer trazer para perto pode ser um ato de amor, mas também pode ser um ato de opressão. É de amor quando o Outro aceita o chamado. É de opressão quando o chamado é rejeitado, mas ainda assim o Mesmo insiste em que o Outro venha – ou vá. Querer “abrir os olhos” de alguém pode querer dizer, apenas, “veja o mundo como eu o vejo”. Como Higgins quis com Eliza. Para Eliza, foi bom. Para outras Elizas, talvez não. E se Eliza quisesse levar Higgins para o seu mundo?

Um mundo sem solipsistas é um mundo em que todos respeitam a alteridade, essa “qualidade de ser Outro”. E respeito se conquista, diz o lugar-comum. Quando chamados equivocados se exaurem, melhor o silêncio e a distância. Quando esse silêncio respeitoso é compreendido como fraqueza, é preciso, lamentavelmente, subir o tom. Mesmo que seja apenas para garantir seu direito de se manter quieto em sua ilha, contra a vontade alheia. Não ser uma ilha não retira a ninguém o direito de recolher-se.

Da ilha para o mar, não são os sinos que fazem o alerta, mas o farol, silencioso e fulgurante no giro perfeito do oclusor, traçado pelo compasso que une dois distantes amantes, compasso nada silente de tango sobre tacos de madeira, vinho barato e cravo na boca, rechiflao en mi tristeza.

Caio Leonardo

19.10.2008

fonte:http://cabodofimdomundo.blogspot.com