Uma das notícias que dominaram as redes sociais esta terça-feira foi a internação para tratamento por dependência química de Andreas von Richthofen. O sobrenome é de triste fama no Brasil, todos sabemos. Muitos sabem também que esse sobrenome é famoso mundo afora por ser o do legendário Barão Vermelho.
Menos gente sabe que Manfred von Richthofen, der Rote Baron, ostentava realmente o título de barão, que ele foi herói condecorado da 1a. Guerra Mundial e que registrou o recorde de 80 vitórias em batalhas aéreas. Menos sabido ainda é que houve outros dois von Richthofen heróis aviadores que lutaram pelos alemães naquela guerra. Um deles, seu irmão Lothar, alcançou 40 vitórias em batalhas aéreas. Manfred morreu em combate aos 26 anos. Lothar, com 28, num acidente aéreo. E o terceiro ás, Wolfram, foi Marechal-de-Campo da Luftwaffe e protagonizou várias das principais batalhas da II Guerra Mundial, da Invasão da Polônia ao fronte da Crimeia, passando pela guerra no Mediterrâneo. Morreu vítima de um tumor quando prisioneiro de guerra, logo depois da capitulação da Alemanha.
Registro esses fatos porque, no hospital, Andreas, já medicado, insistia em querer de volta a medalha que tinham tirado dele, quando chegou violento e agitado. O objeto foi devolvido, era uma medalha, mesmo, de ouro e com esta inscrição:
“Praetorius von Richthofen 1561 – 1961”
Obviamente, uma joia de família. Andreas, sujo, drogado, em farrapos, podia parecer desarvorado, mas sua árvore genealógica ainda lhe falava mais alto. Ir atrás do que significa aquela medalha revelou a este incurável curioso que Andreas não só é sobrinho-bisneto do Rote Baron, porém, mais do que isso, na verdade ele compõe a décima segunda geração da nobre Casa von Richthofen, criada (no sentido nobiliárquico) em 29 de julho de 1661 quando Johann Praetorius, Senhor de Rauske bei Striegau e de Hertwigswaldau bei Jauer, foi ordenado Cavaleiro “von Richthofen” pela Corte da Boêmia, então reino do Sacro Império Romano-Germânico. Em 1581, ele ainda seria ordenado Cavaleiro da Corte da Prússia.
Não é a esse Johann – até então “Praetorius”, a partir de então “von Richthofen” – que a medalha de Andreas faz menção: ela comemora os 400 anos da elevação à nobreza de Paulus Praetorius, bisavô de Johannes, tido por isso como primeiro da estirpe. A Casa von Richthofen, portanto, conta hoje 456 anos.
Andreas, ele mesmo, conta hoje 30 anos, e leva consigo histórias demais, histórias bastantes para arquear seus ombros e histórias suficientes para jamais baixar sua cabeça diante de ninguém. Sua família é de nobres, guerreiros, intelectuais, diplomatas, políticos – e até hoje parentes seus ocupam posições de destaque no cenário alemão e europeu. Um tio seu foi embaixador da Alemanha em Londres até poucos anos atrás.
Pois esse talvez relutante aristocrata, que passou anos abaixo do mesmo radar que jamais deu trégua à sua irmã, foi encontrado maltrapilho e espaventado, tentando invadir uma casa abandonada. Levado ao hospital e lá medicado, ele se apegou não ao tabu da sua família nuclear, horrendamente despedaçada, mas sim ao tótem: à medalha que simboliza a Casa transcendente, esse Ente portentoso, edifício colossal de doze andares erguidos ao longo dos séculos com o sangue de seus antepassados, estrutura que agora se equilibra sobre os frágeis pilotis que são as pernas magras e debilitadas de um homem de 30 anos, que a imprensa decidiu tratar por “rapaz”.
A imprensa não se referiu a ele da maneira como em regra faz com os encontrados na mesma condição, isto é, como “vagabundo”, “nóia” ou “lixo humano”. Andreas von Richthofen ter sido chamado de “rapaz” na imprensa da São Paulo de 2017 é a sutil reverberação do aristocrata que ele procurava na medalha dourada.
O Rapaz von Richthofen tem diante de si, pode-se talvez propor, a chance de exercer um papel heróico, como lhe convém: O do fidalgo caído que foi resgatado e que relata seu drama com a esperança de incutir no pretor e nos cidadãos a curiosidade a respeito de quais outras histórias o crack esconde em praça pública.
Porque é ouvindo histórias de vida que se pode encontrar, passo a passo, pessoa a pessoa, drama a drama, tragédia a tragédia, os muitos caminhos que precisam ser trilhados para fora da armadilha que é uma cracolândia.