Dos Aflitos e das Penas

– eu, pombo que vejo

o milho derramado

o passeio do velho, o canivete na curva,

a manga e a paina, a mancha da pitanga,

a folha ardendo e a folha dobrada,

o remanso e o fim da mansidão

– eu, pombo que voo baixo

atento ao bicho homem e ao lixo dele

(que apanho ao brigar por fêmea,

que tenho a asa ferida e o olho sujo)

declaro ser verdade e dou fé:

esta praça é a mesma e o que virá dói mais.

– eu, pombo detestado e proibido,

cassandra cansada de guerra,

que não conheço a fome porque como

da mão melancólica de quem se perde

e é tanta gente que se perde

que jamais faltará milho a pombo.

– eu, pombo do pós-estilingue,

da pós-política de higienização,

do pós-especismo,

em plena curva no ar,

de costas para o cimento lá embaixo,

por cima das poucas copas

num looping desengonçado para além das minhas asas –

pombo indo além das suas sandálias

(aquelas de que sempre suspeitei) -,

eu pombo e pássaro e vivo e atento,

desisto ou não desisto?

– eu, pombo ilustre do peito depenado,

o pombo impresso no olhar da mulher que passa e que decide

se sou a natureza ou um incômodo,

se mereço milho na mão ou bolsada mortal,

enquanto ela segue para o Plano

sob o sol que sempre arde no cerrado

e nas minhas penas.

– eu, pombo que sempre vou ser a ameaça

de desfazer o jogo de xadrez,

de cagar no seu quepe,

de não bicar o milho na sua mão,

de não fazer o que esperam de um bom pombo de praça.

– eu, que não sou Fernão, nem Hélio,

eu vejo o que vejo, ouço o que ouço,

leio todos os jornais carcomidos,

folheio os livros jogados no chão,

Eu, infestado de vocês e refestelado de mim,

sou o que dorme na cidade

e você o que não dorme,

sou o que comerá o milho da sua melancolia,

e eu durmo e dormirei é sobre o concreto

ao lado do Caverna,

eu olho e oro pelo sorriso vivido e tímido do Caverna,

pela sua história que não ouso imaginar,

pelo tempo que levou para vir a pé de São Paulo a Brasília,

eu olho e oro pelos seus passos infinitos,

pelo seus vincos de sol na cara.

ave, Caverna!

o sábio dono de nada, mas colecionador de chapéus.

ave, Caverna!

pombo sem penas do lago Sul,

com seu andar recurvado,

um carrinho torto de mercado

e aqueles óculos de Raul.

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caio leonardo, après Zé Geraldo

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