A cobertura midiática da campanha eleitoral à Presidência da República jogou tanta desinformação sobre tantos temas, que mesmo um mínimo de aproximação da “realidade” é inalcançável.
Tudo é disputável, tudo é suspeito, tudo é envolto em ações concertadas de diluição de sentido no reino em que (e, como nunca, “para o qual”) os significados são tentativamente construídos: o reino da Mídia.
Não é o eleitor, nem o leitor, o ouvinte ou o telespectador o destinatário dos discursos dos candidatos. O destinatário é a própria Mídia, cujo discurso revela que se vê detentora dos direitos sobre a comunicação com o eleitor, o leitor, o ouvinte e o telespectador. Esta comunicação é outro processo, que não diz respeito aos candidatos: a função dos candidatos é dirigir-se à Mídia. A Mídia é que tem por função dirigir-se aos outros destinatários.
“Realidade” sempre foi um conceito equívoco. Duas pessoas raramente se entendem sobre o que é a realidade; dois partidários de credos políticos distintos, nunca. A natureza da mediação hoje estabelecida entre candidatos, mídia e eleitores desnaturou a própria disputa e instaurou uma nova, não entre dois candidatos ao Poder Executivo, mas sim uma disputa entre o Poder Executivo (e seus postulantes) e o Poder Midiático.
Não estamos em Orwell, nem com Goebbels. Ninguém detém o poder absoluto do Grande Irmão, nem é unilateral o recurso à repetição de mentiras. Em Orwell, o Estado é o Meio e a Mensagem; enquanto em Goebbels, a Mensagem serve ao Estado. Porém o que vivemos, hoje, no Brasil, é outra coisa.
Vivemos “Rashomon encontra Rede de Intrigas“.
Em Rashomon (mais no filme de Kurosawa, menos no conto de Akutagawa), um mesmo fato é visto de forma totalmente diversa por várias testemunhas oculares. A realidade, em geral, é assim: tudo é uma questão de ponto-de-vista. Mas em Rede de Intrigas, de Sidney Lumet, a realidade é transmudada por interesses, distorcida, jogada de acordo com conveniências ora robustas, ora fátuas; conveniências articuladoras de teias de desinformação tecidas para compor uma “realidade” descolada dos fatos, para além dos fatos.
Nos últimos anos, dois fenômenos vêm alimentando essa conduta, que agora chega ao paroxismo. Um é o que chamo de “Síndrome de Bob Woodward”; o outro é o advento do “Jornalismo de Hit Parade“.
A Síndrome de Bob Woodward (SBW) em alguns aspectos é aquilo a que chamam de lacerdismo: o jornalismo com a intenção de derrubar o governo. A diferença entre o lacerdismo e essa síndrome está em que Carlos Lacerda tinha uma agenda política, enquanto aqueles submetidos à Síndrome de Bob Woodward não necessariamente. Há os que, sinceros em sua busca por celebridade jornalística, querem apenas passar à história como o jornalista que deu o “furo que derrubou o presidente”. Ou seja, não são necessariamente movidos por uma agenda política: há os que são movidos por vaidade, mesmo.
O problema está no encadeamento da “Síndrome de Bob Woodward” com o “Jornalismo Hit Parade”. Com o surgimento do webjornalismo, o jornalismo de blogs e de sites, a natureza mesma da indústria do jornalismo foi alterada. Uma coisa é, na mídia impressa, pôr nas ruas uma edição por dia e disputar um leitor na banca de jornal. Outra coisa é ter de capturar a atenção de um leitor a cada clique: acabou de ler uma matéria, é preciso haver outra que o mantenha no site ou que provoque mais hits, essa nova commodity.
Os hits têm conseqüência. Os leitores reagem em tempo real, com extensão, velocidade, intensidade e impacto sem precedentes, num movimento típico da revolução das telecomunicações. Há interação entre leitor e Mídia, mas também entre leitores. Os leitores tornaram-se protagonistas de processos paralelos de comunicação e de condução —ou, pior, de diluição— de sentidos.
A disputa por hits a cada minuto somada à busca da consagração pela queda do supremo mandatário gerou um coquetel explosivo. Perdeu-se a acurácia na verificação de informações. O que quer que fosse dito passou a ser publicado pelo fato de ter sido dito.
Aqui, sente-se o influxo de um terceiro fenômeno, determinante para a instauração desse bathos generalizado, dessa queda profunda na qualidade do discurso jornalístico: o advento do jornalismo das celebridades e sua contaminação sobre o discurso do jornalismo político.
Para o jornalismo de celebridades, qualquer coisa dita ou feita, apenas por ter sido dita ou feita por uma celebridade é notícia. Celebridade que se define, aliás, tautologicamente: celebridade é aquele que tem publicado o que quer que diga ou faça.
Pois o jornalismo político adotou, recentemente, essa postura. O que importa são as frases de efeito ou aquelas às quais se quer dar efeito determinado. Crises de mercado geradas a partir de frases soltas, que não têm qualquer influência na condução concreta as ações de Estado. São crises fabricadas a partir da fatuidade de um jornalismo que quer hits e quer seu momento de celebridade, de Bob Woodward.
O mundo das celebridades é fátuo, mas a República não é. Não pode ser tratada como frívola, nem com frivolidade.
Esse coquetel explosivo composto da SBW, do jornalismo como hit parade e da apropriação, pelo jornalismo político, das medidas de valor do jornalismo de celebridades chegou ao paroxismo com a aproximação das eleições. Por que, nesse momento, o que antes era fatuidade e diluição recebeu o impacto da agenda política das grandes corporações de Mídia.
A Mídia exerce um poder de influência imediata em comportamento, que o governo não tem. Nem o Executivo, nem o Legislativo, nem o Judiciário têm.
A conjunção dos três fenômenos mais a agenda política das grandes corporações de Mídia mudou a dinâmica e a natureza da grande disputa nesta eleição. O eixo não está colocado na oposição entre Alckmin e Lula: está, sim, entre o Poder Executivo (e seus postulantes) e o Poder Midiático. O segundo querendo submeter o primeiro.
Da mesma forma que há postulantes ao Executivo, há conflitos no interior do Poder Midiático. Redes e veículos se digladiando em praça pública, para obter o controle sobre o sentido —e, no limite, sobre o mandatário do Poder Executivo.
Nesse processo, os candidatos têm sido submetidos a toda forma de distorção de suas posições. A agenda deles é ditada pela Mídia. A agenda da campanha, seus programas de governo, tudo muda de acordo com as manchetes. É preciso encantar os donos da voz, é preciso atender aos desígnios das Networks (título original de Rede de Intrigas), para reduzir o risco do caleidoscópio de interpretações —para mitigar o efeito Rashomon.
Aqui, agora, não há o que se possa fazer para repor os fatos nos eixos: a todos e a ninguém é dado autoridade para erguer a voz e fazer-se ouvir. Quem diz a verdade: Ali Kamel ou Boechat? Os blogs ou as comunidades do Orkut? Entre estes, quais, se são tantos, e tão divergentes, e com tanto ódio sendo irresponsavelmente destilado.
O sentido de “realidade” depende de sua filiação. E como ficam aqueles a quem filiação não basta quando se indagam o que se passa?
Estamos condenados a escolher entre versões propositadamente antagônicas, ou temos, cidadãos, como lançar mão de garantias constitucionais para exigir respeito, moderação e jornalismo de qualidade, produzido sob as normas republicanas que regem o país?
Toda essa situação complexa está sendo administrada por empresas privadas sem qualquer compromisso com o interesse público, nem qualquer controle sobre sua conduta no trato do direito à informação.
Eis o anátema que não pode mais seguir calado: há um único Poder totalmente intransparente, nepotista por inspiração constitucional, para o qual se ascende sem voto nem concurso público, que não está submetido a controle externo, que investiga mas não admite ser investigado, corporativista como nenhum outro; esse Poder, único e quarto, não se vê a si mesmo submetido às regras do devido processo legal: produz reiteradamente prova ilícita, adquire contumazmente provas ilícitas, julga sem contraditório, é o tribunal de exceção que chama a si mesmo o Bastião da Liberdade: este Poder é a Mídia.
Porém, a Mídia não é um poder constituído, não tem que pretender hegemonia de nada, não tem que entrar em disputa eleitoral. A Mídia é concessionária de serviço público, submetida, sim, a balizamentos constitucionais —que não respeita. Julga-se acima deles.
Há três soluções para esse embate por hegemonia que não deveria ter lugar: a solução de Fausto, a solução do enfrentamento ou a solução republicana.
Fausto entrega sua alma para obter o Poder. Rende-se ao Poder Midiático para assumir o Poder Executivo —uma armadilha conhecida.
Quem parte para o enfrentamento em busca da reposição da “verdade em seu devido lugar”, submete-se à agenda da Mídia, porque é no terreno dela que esse confronto é possível —embora o sucesso não o seja. Signifca brigar pela “verdade” com o “dono da voz”. É querer lutar no campo minado alheio munido de pés e punhos.
A solução republicana é recuperar os balizamentos constitucionais para o uso da voz. É reconduzir o foco das relações de Poder a quem detém Poder constitucional. Acionar o Judiciário para coibir abusos; estabelecer o debate regulatório sobre o setor no Parlamento; e atribuir ao Executivo, ou à sociedade em seu nome, os instrumentos necessários para garantir liberdade com responsabilidade, e a restauração da ordem constitucional num território sem lei.
É estabelecer o debate sobre o controle acionário dos meios de comunicação: por que manter o controle de empresas de comunicação social nas mãos de pessoa física, se hoje já é estabelecida a responsabilidade criminal de pessoa jurídica e já temos o recurso à desconsideração da personalidade jurídica para responsabilizar administradores? Por que manter esse nepotismo imanente, que se dissemina por todas as corporações desse setor, atavicamente?
Um exemplo gritante de nepotismo, que sequer foi tratado como tal em lugar algum. Por que devemos aceitar um jornalista declarando seu amor de público a uma amante —ele, um homem casado—, amante a quem ele apadrinhou e apadrinha para que ela faça matérias jornalísticas na mesma casa? Isto é o mesmo que um deputado contratar uma amante para seu gabinete. Ou não é?! Outro, as relações mais do que escusas, criminosas mesmo, entre um delegado e jornalistas: um oferecendo de contrabando informação a receptadores. Mesmo para críticos da Mídia, a conduta dos jornalistas foi correta: “a função deles é obter informação”, defendem. Ir contra ordem judicial é ato ilícito, seja o perpetrador jornalista ou não!
O Executivo está submetido a controle interno e externo, este último exercido pelo Legislativo com auxílio do Tribunal de Contas da União —que também exerce controle externo do Legislativo e do Judiciário. O Judiciário está submetido, também, ao controle externo exercido pelo Conselho Nacional de Justiça.
Só o Poder Midiático não tem controle externo. Recusa-se a tê-lo.
Debatamos a conveniência de toda empresa de comunicação ser constituída na forma de sociedade por ações, de estar sujeita a regras de governança corporativa e ao controle externo pela Comissão de Valores Mobiliários. Assim, teremos controle de quem aporta recursos nela, de para onde vão recursos dela. Com muito poder, vem muita responsabildidade.
Debatamos a urgência de toda empresa de comunicação saber-se submetida (e agir tal como quem está submetido) às regras a que os tribunais e as autoridades operadoras do direito estão submetidas, para que a mídia não siga se autoconstituindo, sem base constitucional, num tribunal de exceção a serviço das famílias que as controlam e dos interesses que representam —sem mandato explícito e público.
A Mídia adquire e veicula provas ilícitas como se não estivesse submetida às regras de direito. Corrompe servidores públicos para obter informações cujo sigilo é protegido por lei. Destrói reputações com a fatuidade de quem filma o sexo de celebridades. Atenta contra a estabilidade da República manuseando frases de efeito que, a rigor, não teriam conseqüências senão pelo seu uso poderoso na frenética dinâmica do jornalismo Hit Parade.
É preciso, sim, avançar no debate sobre o controle externo do Poder Midiático. Um controle que respeite a liberdade de expressão, bem como todas as demais garantias constitucionais, como o direito à intimidade, ao devido processo legal, à responsabilidade pelo dito e pelo dolosamente omitido. Um controle que exija o cumprimento dos Princípios estabelecidos no artigo 221 da Constituição Federal, a que estão submetidos rádios, televisões, jornais, revistas, Internet —toda a mídia:
“I — preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II — promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III — regionalização da produção cultural, artística e jornalística conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV — respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.”
Isto sem esquecer a necessidade de “estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente” (artigo 220, §2º, inciso II, da Constituição Federal).
Há muito que discutir para que não se repita este ambiente descontrolado, contingente, labiríntico, aleatório, desestabilizador, mercenário e francamente antiinstitucional ou, numa nova palavra para uma nova situação: “preterconstitucional” —por conferir Poder, atribuições e competências além das fronteiras da Constituição. A Mídia brasileira vive num Estado de Exceção. De seu ponto de vista, olha o Estado de Direito como seu guardião —o que apenas reforça a natureza autoritária de sua conduta.
Isto não é uma eleição: é um hostile takeover. Os bidders são as grandes corporações da Mídia. O asset que lhes interessa? Hoje, nada menos do que a sujeição do Palácio do Planalto aos ditames de um jornalismo que cobra uma ética que esse mesmo jornalismo perdeu em meio à sua transição para uma nova economia.
Uma nova economia cujos impactos sobre o negócio do jornalismo seus agentes não compreenderam, nem dominam, enquanto são dominados por esses impactos, por novos vícios e por suas próprias veleidades, que desnaturam o exercício do dever de informar, e impõem ao país uma desestabilização institucional fabricada, embora caótica.
A agenda política brasileira em 2007 tem de incluir a regulação da Comunicação Social, para garantir o direito à informação, à transparência no jornalismo e o balizamento republicano de seu exercício.
Quinta-feira, 26 de outubro de 2006