Down and Out in Paris and London

Anotação encontrada num diário abandonado

24 de Dezembro de 1999

São onze horas da noite, sei que chove lá fora, mas é só o que sei. Passeio pelos canais de televisão, nada me prende. Minha cabeça está em ziguezague, desnorteada, um labirinto em mar alto, uma tormenta aqui dentro. C. disse que não vem. Por e-mail. Disse que tinha voltado para o noivo (um recado para eu não insistir), e que a história de nos casarmos em Praga era – não lembro bem o que ela disse. Minha mente vagueia, sem ordem, sem rumo. Saí de Londres, e vim para Paris – esse refúgio da indiferença de Covent Garden, onde tudo é encantador, até as pessoas são encantadoras, só não se aproxime. Vim para Paris, e estou despejado sobre a cama, hotel Crystal. Chove lá fora, e assisto televisão. Não, passeio desatento pelos canais. Andrea Bocelli canta em Notre Dame. É véspera de natal, e ele canta a alguns quarteirões de mim. Estou na rue de Saint Benoît, a cem passos de Le Bilboquet, que Eros me apresentou em 96. Um refúgio ao som de jazz, onde me diverte o fascínio do jazz sobre os franceses. Um refúgio. Controle remoto na mão, toco as teclas compulsivamente. Tocatta e fuga em dor maior. Dor seca, que não vem pra fora. Catatonia. Notre Dame de novo, Bocelli ainda canta. Mas não vou até lá. Hoje é véspera de Natal, faria sentido. Se eu fosse um turista. Está chovendo, e C. me deixou. Por e-mail. Era para estarmos nesta mesma Paris hoje. Daqui, para Praga. Em Praga, na Catedral de São Vito, trocaríamos alianças, só nós, e começaríamos o quê, mesmo? Ela estava certa. Vim para Londres passar um ano de reflexão e cosmopolitismo. Até agora, solidão pela primeira vez, e a violência do individualismo utilitarista que é a alma britânica. Se isto é o grande mundo, eu quero descer. Quero … não sei o que quero. Minha mão não pára de correr os canais de TV. Aí está Bocelli mais uma vez. A voz quente não me comove, só constato a beleza da coisa, a nave portentosa, os vitrais, a pompa… mas eu sou eu e as minhas circunstâncias. Nada me comove. Estado de choque. Um e-mail recebido às quatro da manhã. Naquela noite, levantei da cama em High Holborn para checar se havia mensagem. Como um presságio. Senti como se o chão tivesse, lá vai lugar comum…, mas o diabo é que esse lugar comum é tão verdadeiro…, pronto, vou dizer: fiquei sem chão. O chão se moveu, mesmo. Pensei que ia cair. Que é isso? Onde estou? Que está acontecendo? E tudo o que acontecia era uma mensagem eletrônica vinda do Brasil, e que me informava de que eu estava mesmo sozinho, e que aquela história de casamento já era. Agora estou em Paris. Peguei o Eurostar, e vim – sem pensar, sem sentir. Estou catatônico. Não sinto nada. Não sei o que estou fazendo, nem para onde vou ou para onde ir. Sozinho. Nunca a solidão me incomodara. Sempre me bastei. Concluí que era horrível me bastar, e que era preciso entregar-me a alguém. Me entreguei. E ela me enviou um e-mail de madrugada, dois dias antes de embarcar. Nem um telefonema. Fez bem. Teria sido um erro, mesmo. Não havia futuro, não havia história, não havia estofo, havia romantismo e aventura, sem as bases para construir uma vida a dois. Só havia a vaidade de ambos, de ter encontrado algo bonito de se viver. Uma aventura entre Paris e Praga, as duas mais belas capitais do mundo, celebrações do gênio do homem ao longo dos séculos. A Praga que encantou meu pai, sua história com Lida – Ludmila – a motorneira, a quem ele nunca mais viu. O fascínio das histórias dele, meu pai, na Cortina de Ferro, quando líder estudantil e comunista. Fazer amor no Vltava. Ele fez, com Lida. Antes de Laura, antes de minha mãe. C. era minha Lida ou minha Laura? Nenhuma delas. Nem eu sou meu pai. Sou um corpo jogado sobre a cama que aperta botões compulsivamente. É véspera de Natal. É meia-noite. Ligo para minha mãe. Feliz Natal. Ela está preocupada comigo. Bocelli ainda canta. E eu não durmo. Não dormirei até a catatonia ser derrotada.

25 de Dezembro de 1999

Acordei, desci à uma da tarde. Perguntei ao concierge se havia algum marché au puces aberto. Ele disse que não, cheio de uma certeza estranha. Perguntei se por causa do Natal. Ele disse que por causa da chuva que caíra durante a noite. A maior tempestade que a França já tinha visto. Ele não soou muito científico. Mas emendou: O Bois de Boulogne, devastado; as árvores ao longo do Sena, no chão. Saí por Saint-Germain des Prés em direção aos bouquinistes, e o que vi foi destruição. Desviei de galhos, entulho. Como não tinha percebido a gravidade da chuva? A janela do quarto era muito pequena, ficava no alto ou parecia estar no alto, vista daquele eterno plano horizontal da cama. Tinha visto clarões por ela, ouvido a chuva, mas nada que impressionasse. Nada que vencesse a catatonia. Uma tempestade que tinha levado pânico à cidade inteira não tinha interrompido a sucessão compulsiva de canais de TV. Parisienses cabisbaixos varriam as ruas, os cafés com as mesas recolhidas, a cidade em rescaldo. Como sempre, a dor dos outros é a que dói em mim, nunca as minhas, nunca essa que agora me deixa de olhos fixos no nada, inerte, que me empurrou esses dias todos à compulsão do quarto de hotel, do nada. E se eu tivesse dado atenção à chuva, e se eu tivesse feito alguma coisa, e se eu tivesse dado atenção ao que me cerca desde sempre…? Essa labirintite me guiou por Saint André des Arts, deserta. E me senti culpado por tudo.

Perdi não sei o quê, enquanto as calçadas se desarvoravam depois de uma noite de excesso. Tudo tinha desabado. Telhados lá fora, eu aqui dentro. A cidade e suas perdas; eu e meus erros. Se tivesse chorado, não teria chovido. A chuva lá fora verteu as lágrimas aqui de dentro. Pardon, Paris.

Notas sobre o Fim da Modernidade

Putin vai prevalecer. OTAN já recuou, deixou a Ucrânia na lama. Aliados dos EUA impuseram sanções econômicas e financeiras.

Resultado de tudo isso:

1) Dólar, Iene, Euro e Libra acabaram de abrir as portas para um sistema financeiro sem base nessas moedas.

2) Esse sistema pode ser um de dois:

a) Criptomoeda;

b) Outro sistema que una China, Rússia e seus aliados (Toda a Ásia com exceção de Japão e Coreia do Sul. Índia deixou Biden com o balde na mão na coletiva de hoje).

3) O fim do sistema financeiro mundial submetido ao dólar é também o fim da política externa de sanções controladas pelos EUA.

4) A OTAN sai desmoralizada por ter exposto a uma superpotência um interessado em aderir à Aliança.

5) Ganha tração a onda autoritária promovida pelo projeto Eurasiano, liderado por Putin em oposição ao Atlantismo (da OTAN): a OTAN nada tem a oferecer a seus aliados; a Rússia demonstrou não ter limites, mas a OTAN, sim.

6) O “Mundo Livre” deixa de existir como ideologia prevalente.

7) Os valores da Democracia e dos Direitos Humanos, originados na Modernidade, mal ou bem criados e defendidos por Europa e EUA, perdem sua tração e cedem espaço ao mundo multipolar defendido por Dugin/Putin.

8) Os nacionalismos tendem a ganhar força. Com isso, as disposições de direita e extrema-direita.

9) Os Estados-Nação tornam-se, a partir de agora, uma ficção frágil: Ou seu povo sustenta suas instituições por si mesmo, em seu território e sob o seu Direito, ou o ambiente externo de defesa da Democracia não terá forças para vir em seu socorro.

A invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 é tão importante historicamente quanto a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 29 de maio de 1453.

A data de hoje pode ser inscrita como o fim da Idade Moderna.

OS SEDESTRES E OS SEDIACHINS

Por Caio Leonardo Bessa Rodrigues

O conflito entre como alguém se vê e como os outros o veem é corriqueiro, parte inescapável de como é variada a percepção que se tem do mundo, de si, do Outro. A luta para aproximar as duas percepções deve ser constante. Mas há algo nessa imagem e autoimagem que só uma educação do olhar pode permitir.

Ligue seu olhar-câmera num drone improvável e faça um travelling pelo alto da avenida Paulista. Procure registrar as pessoas pelas calçadas, atravessando a avenida para ir ao MASP, ao Center 3, ao edifício Gazeta, atrasados para a próxima sessão no Belas Artes redivivo. Note um ruído na dinâmica dos fluidos urbanos, dos corpos que se movem para todo lado.

Perceba: alguns desses andares mais parecem com movimentos de remadores em pleno asfalto ou cimento. Esses são os sedestres. Para efeito do seu olhar, nesse momento, as pessoas pela avenida dividem-se entre Pedestres e Sedestres. Pedestres, os que andam a pé. Sedestres, nós outros, os que andamos sobre “cadeiras” (“sedes, is”, em latim).

Ninguém é pedestre fora das calçadas, a não ser, eventualmente, por suas opiniões. Mas assim como há pedestres no mundo das ideias, há quem se resuma a sedestre também fora das calçadas: são aqueles que permitem que as cadeiras de rodas os definam, assim como alguns se definem pelo carro que têm, tênis que usam, bolsa que compraram no JK. Fora das calçadas, e mesmo nelas, o conflito entre autoimagem e a visão do Outro sobre si próprio costuma ser mais complexa e desafiadora.

Quando o conflito se estabelece entre o que somos e o que querem que sejamos, nesse momento impõe-se uma decisão estratégica: ver-se apenas como sedestre ou tornar-se um sediachim.

“Sediachim” é o que enfrenta o mundo com sua cadeira, como faz o espadachim com sua espada, ou o “enxadachim”, de Guimarães Rosa, que enfrenta o mundo com sua enxada. O que se paramenta para a luta faz de sua cadeira o instrumento para afirmar sua diferença e expor as barreiras arquitetônicas, urbanísticas e atitudinais, contra as quais, quixote em seu cavalo de rodas, ergue sua perícia de sediachim.

A identidade de cada um, velha questão, não se resume à profissão, ao gosto musical, à preferência sexual, à condição física ou ao modo como se vai da Consolação ao Paraíso: se de carro, bicicleta ou cadeira de rodas. Ninguém é seu afazer ou seu gosto ou sua condição. Mas assumir personas é necessário para a superação de obstáculos que exijam ação no meio social ou político.

Quando diante da necessidade de afirmar um direito ou de lutar para a construção de um direito, a persona justifica-se. Afirmar que São Paulo – como toda e qualquer outra cidade no mundo – precisa ser pensada e refeita (sim, refeita) tendo em mente as circunstâncias dos sedestres – e as dos cegos, as dos surdos, às daqueles com habilidades mentais diferentes – exige mais do que a elegante postura de remador urbano sobre um incongruente caiaque sobre rodas.

É preciso, portanto, afirmar que toda política urbana deve ser permeada pelo olhar daqueles que rompem o paradigma absurdo do homem médio, essa avis rara.

Essa afirmação exige que o sedestre se transmude em sediachim e grite: Nada sobre nós, sem nós!

E é por isso que, ao passar por um sediachim, na rua que for, no bairro onde estiver, levo a mão esquerda espalmada ao punho direito fechado e curvo-me em reverência. Assim se cumprimentam os artistas marciais.”

O ÚLTIMO VERÃO ANTES DO PASSADO

(texto de 2014, em que uma voz faz saber o que certos muitos fariam – e vieram a fazer – nos verões seguintes, para nos levar a todos ao que sabíamos que outros haviam feito em verões já então passados)

No seu MacBook Air,
um olhar contemporaneamente brasileiro
vai do terroir
ao terror.

E se subleva,
confortavelmente,
entre amigos.

As vísceras estão expostas, seu Brasil é horrível.
Já foi pior, mas não era possível ver.
Agora se pode. Agora ele vê.
Ele vê julgamentos. Vê condenações.
Como nunca antes.

E então ele julga.

Diariamente, julga. Condena.
Uma dose diária de indignação cívica.

Por ver pela primeira vez,
acredita que tudo o que vê
acontece pela primeira vez.

E ele então se subleva –
entre a foto de um malbec,
um video de trombadas na Rússia
e uma espiada num perfil ousado,
ele se subleva.
Mergulhado na sua solidão,
nas dores que ele mal reconhece,
ele se subleva.
Dia após dia,
ele se subleva.

Com um clique.

A queda do véu das aparências
é demais para ele, diante da tela de alta resolução.
Aquela dose diária já não basta.

Surge a multidão,
em ato e em potência,
retroalimentada pela clique dos cliques,
entorpecida pela luz da tela e o prazer
mórbido
do julgamento e da condenação
fáceis.

E vai ele,
e vai a multidão
atrás de doses mais fortes.

Na multidão,
mesmo os que pensam
que pensam,
amalgamam-se, amoldam-se,
desaparecem.
Para não sumirem no espetáculo,
constroem cicatrizes na carne
sua e do Outro,
para exposição imediata,
mediática:
estética da violência.

Os cadáveres já estão aí.
De todos os lados do jogo.
O morador de rua,
a dona de casa,
o cinegrafista.

O jogo segue sem regras,
nem objetivos.

Seguirá até
a ruptura
do esgarçado tecido das relações de poder

Quando então os fantasmas
não serão mais meras postagens compartilhadas.

Quando então o retrogosto
de um vinho aparentemente envelhecido
mostrará de novo seu amargor.

Quando então alguns despertarão
para o fato de que o horror de hoje
está em finalmente podermos enxergar tudo e todos
como realmente é e somos

Quando então a transparência insuportável
dará lugar à velha noite
em que os adultos de hoje nasceram

Quando então voltaremos
a marcar o passo.

Quando então será tarde demais
para ser consequente.

caio leonardo, 19 de fevereiro de 2014. Meses antes.