Mais Coragem do que Homem

Hoje, um dos carcarás que são meus vizinhos, já são quatro, siava por aqui e notou minha existência na varanda, enquanto eu descansava os olhos nele mesmo, carcará, que ave linda.

Atravessou duas vezes a avenida que corta o condomínio. Na segunda, abriu as asas imensas para reduzir a velocidade e olhar bem pra mim. Olhou, virou a cabeça, olhou, tudo muito rápido. Seguiu, retornou para o poente, foi-se com o sol.

Imaginei o que fazer para ele ficar ao meu lado um pouco. Aqueles silêncios entre predador e presa, os papéis mal-definidos, quem é quem e quem quer o quê. Eu só queria vê-lo de perto. Altivo, forte, o rostro carrancudo, formidável. E se ele tivesse pousado na minha mão? No meu braço? As garras são grandes e afiadas, maiores do que a minha mão. Teriam me machucado. Poderia ter bicado meu rosto, meus olhos. Poderia ter aceitado um afago. Bicado a outra mão, se achasse que fui longe demais no cafuné pelas asas. Dado uns pulos em volta de mim no sofá redondo da varanda. Estranhado a cadeira preta em meio ao claro da outros móveis. Poderia ter bicado o pneu da cadeira, e isso sim seria uma chateação.

Queria era que ele tivesse pousado aqui. Que se sentisse à vontade do meu lado. Se me atacasse, também teria gostado. Assim, teria uma história para contar, não um flerte.

(foto: Flavio Cruvinel Brandão)

Livros e Travesseiros

Haikai da Mesa de Cabeceira

Lysol, Nívea, Sol,
Sanremo Boulevard,
Samsung, LG, Roche.

Haikai da Outra Mesa de Cabeceira

Rumi, Salinger –
No Caminho de Swann, Proust:
Melville e Stendhal.

Pandecaedro

Na natureza,

Não existe ângulo reto.

não existe quadrado, cubo, retângulo.

Meu quarto, feito só disso

é a medida

do meu divórcio da natureza.


E é ela que não me quer de volta.

O mundo está acabando

lentamente,

meu luto a teu luto.

Amor, Sol e a Pata da Aranha

“Amor incondicional” é o novo “calor senegalesco”, como se não existisse mais dúvida nem medida, como se não existisse um calor mais ou menos, lá pelos 26° C, um amor de perdição, o vento noroeste de Santos, o amor que divide, o sol das três da tarde em Brasília, o amor que vai embora, o meio-dia de Janeiro no Rio, o amor de Fevereiro, tudo justo quando menos se ama e mais desequilibrado o mundo das relações humanas se encontra; justo em meio ao aquecimento global.

O lugar-comum é a dispensa da reflexão, o abandono do olhar autêntico, é a preguiça de viver, a ilusão de que repetir uma fórmula vai conter as forças caóticas do universo.

Ler mais uma vez “amor incondicional” acaba sendo como misturar asa de morcego, pata de aranha, olho de coruja e sumo de carqueja no velho caldeirão do auto-engano.