Brasília vai a São Paulo, mas volta.
Calor e táxi sem ar-condicionado, depois de praça da Sé e rua da Glória ao meio-dia. Na Sé, para cumprir deveres de advogado; na Glória, à procura de um sashimi, que em Brasília não se come isso decentemente em lugar algum. São umas tripas que desmaiam no hashi. Sou traído pela memória, erro o caminho, o centro de São Paulo não me pertence mais, um estranho na sua própria cidade. Um táxi me resgata na Conselheiro Furtado, sigo para a Paulista.

_ O carro tem ar-condicionado? – eu, desesperado. Ele, acabrunhado:
_ Não tem, não senhor. Se o senhor quiser, eu coloco noutro carro.
Coloca a mim noutro carro. Pessoas vivem querendo me colocar aqui e ali. Sou um móvel a céu aberto. Quem manda andar sentado? A vida é que manda, e eu ando, e todos querem me colocar aqui ou ali.
No caminho, o motorista explica que o médico não deixa usar ar-condicionado, dorme mal à noite se usar. O desespero avança: suor e paletó, gravata e mormaço. No caminho, o motorista me mostra um ótimo lugar para almoçar, é lá onde ele come sempre. Eu tinha contado a ele que me perdera do sashimi, e que agradecia pelo resgate.
Olho o lugar onde ele sempre come com sincero interesse antropológico – mas que, por ser antropológico, não é um interesse autêntico e revela logo meu meio, meus gostos, essa coisa burguesa que já me dominou e não tem jeito. É possível, percebo, ser sincero sem ser autêntico. Ainda olho o lugar. O tempo anda lento como asfalto derretido. O carro não para, só anda lento no asfalto derretendo porque é São Paulo, então posso ver que estão lá no lugar onde o motorista come: a sinuca, a televisão, a lousa, o giz e o picadinho, que hoje é quinta-feira. Portas de alumínio recolhidas no teto, portas abertas ao calor da rua, nenhum refresco para o martírio do sol, só a cerveja que o sujeito imenso toma no gargalo, na porta, camiseta regata e chinelo. Bermuda. Ronaldo vai brilhar ali domingo que vem. Algumas garrafas vão cobrir de âmbar o chão da calçada. Talvez mesclado ao âmbar algum tom de vermelho, se o Corinthians perder.
_ Da próxima vez, apareça aqui, tem todo tipo de prato que você quiser – convida o motorista em tom de iniciado.
Fico imaginando que pratos todos eram aqueles. Belle meuniere, Osvaldo Aranha, Filet au poivre, esses nomes que estão em todos os cardápios desde 1960, e ao que se dá, em conjunto, o nome vazio de “cozinha internacional”, mas que é a cozinha do Suplemento Feminino do Estadão, contrabandeada nos últimos quarenta anos para todos os cardápios de um certo mundo ubíquo e invisível, mas um mundo onde se come. O que desanima não é o lugar ou a comida. Morar em Brasília é comer sempre mal. Eu até já estaria todo Pierre Clastres, não fosse o calor.
O calor pede porto seguro. Vou ao Spot, esse ícone paulistano a uma quadra de outro ícone, que é a avenida Paulista. Os vidros verdes-claros que são as paredes do Spot são um refresco para os olhos e a antecipação do refresco que é estar lá dentro. Lá dentro tem ar-condicionado e não tem televisão. Tem moças bonitas como as da televisão. Da bermuda com chinelo e camiseta, a cidade passa a Fendi e vinho tinto, no deltatê de uma bandeirada. Abandono o camarão à belle e me entrego camaleão às belles.
Entro, peço mesa e vou tomar um banho no lavabo. Tomo um banho no lavabo e, na volta à espera, encontro Tonico, que não via havia anos. Sempre encontro gente que não vejo há anos quando vou a São Paulo. Se não vivo lá há anos, é compreensível que quem quer que eu encontre não tenha sido visto… há anos. Uma senhora em cadeira de rodas entra pela porta lateral. Abro alas com a minha, e cedo minha preferência a ela. Tonico se agrada da gentileza, depois volta para sua gente. Ao fim do almoço, Tonico terá pago a minha conta para que eu saiba que ele também é gentil. Eu sabia, Tonico. Obrigado mais uma vez.

Uma boa mesa na porta lateral, e me espalho solitário num latifúndio de quatro lugares no restaurante lotado. Descanso os olhos nalgumas mesas. Abro a New Yorker que chegou mais de mês atrasada, Obama na capa como o Washington de Rembrandt Peale, capa histórica. Rembrandt Peale, quanto provincianismo em quem pintou os founding fathers. Passo os olhos no texto de um indiano: The Elephant. O gosto pelo multiculturalismo alimenta textos como aquele, em que “dados culturais” fazem a suposta graça da coisa. Pobreza e bicicletas com outro nome, nome indiano, exótico, multicultural. E nada mais.

Então, vem Manuela:
_ Você já escolheu?
_ Você é argentina?
_ Meu pai é espanhol.
_ Filet au poivre. E purê de batata. Antes, suco de tomate e uma água. Depois, Coca-cola.
_ Ok.
_ Qual o seu nome?
Ela responde.
_ E o seu?
Respondo.
Quanta tensão num diálogo tão sem graça quanto o elefante do indiano. Manuela tem uma beleza desconcertante, aqueles cabelos negros ondulados, alta e frágil, o sorriso doce e altivo, traços fortes e suaves – uma beleza vertida em oximoros. Manuela serve com sorrisos, ilumina meu dia com outra luz, não a daquele sol no lá fora, à espreita, formidável.
Eu tinha visto o sol nascer em Brasília, antes de pegar o avião às 9h15. Ver o nascer do sol revigora. Vi a lua nascer toda pós-cheia, agora que de volta a Brasília – ela, lua, toda amarela, subindo por detrás do palácio da Alvorada, alvorada selenita. Isso também revigora, quando não rouba o fôlego.
_ Você roubou meu fôlego, Manuela. Agora ponha coca-cola no lugar dele.
Manuela no lugar certo. Manuela que nem mais vou ver. Não trago na lembrança suas meias ou seu sapato. Manuela, eu tirei o seu retrato.

caio leonardo – 2009. publicado antes em 6loggers