Sera tamen

Se penso antes de falar,

se penso antes de escrever,

se decido não falar,

se concluo que não é prudente escrever,

se o que projeto adiante me aturde,

se o que vejo em volta me desconcerta,

se de manhã não canto no chuveiro,

se ao chegar ao escritório não cubro de sorrisos e carinhos e atenções a todos,

se adio abrir os jornais,

se me perco em conversas angustiadas com almas angustiadas,

se me esqueço de ler,

se me esqueço de escrever,

se me doem as costas e prefiro calar,

é porque não há mais liberdade para nada disso.

E não há mais liberdade para isso.

Não há mais liberdade.

E que isto fique claro

a cada poema sobre formigas

a cada parágrafo sobre futebol,

a cada palavra,

a cada palavra não dita.

caio leonardo

28 de julho de 2019

Anotação n° 1/2019

Nem razão,

nem paixão. Nem ódio,

nem amor.

Apenas sanidade. Alguma sanidade.

A Era de Tinitus

Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João. Jo 1,6

Em 15 de julho de 2000, ouvi João Gilberto no Barbican. Fiquei no corredor atrás da última fileira, e era como se ele estivesse bem ao meu lado, sentado do jeito dele, paletó gravata e violão. A acústica da sala oferece essas intimidades. Tinha lido Chega de Saudade, do Ruy Castro, livro saboroso que orientou o quanto pôde meus ouvidos para entender o que o baiano fizera e fazia para ser tão extraordinário. Foi uma noite de educação dos sentidos.

À saída, no imenso foyeur, escondida num canto, sozinha, entretida com as próprias mãos, Angelica Huston. Parei no longe dela em que eu estava, um grande vazio, só nós. Ela deu aquele sorriso letal com os olhos baixos mas fixos em mim. Sorri de volta com a reverência de um Gomes à sua beleza única. Foi uma noite de educação dos sentidos.

Semana passada, enquanto ainda era possível viver, me lembrei dessa noite formadora. É que tinha achado um audiolivro sobre como Ouvir e Entender Música de Concerto, e as palestras foram me remetendo àquela orquestra toda que João Gilberto encaçapava no seu violão – lá ele a mantinha em silêncio à vista da mente da plateia, como potência e fúria encolhidas entre os seus acordes sincopados, seu ritmo feito de pausas, seus sussurros de vida boa à beira da praia. Vinha sendo uma semana de educação dos sentidos.

O silenciamento de João é a ruptura da caixa de ressonância daquele velho violão, e é o derramamento, a céu e olhos e ouvidos abertos, de toda a dissonância cacofônica daquela até agorinha escondida orquestra, orquestra que explode em fúria, antes potência, agora ato – e a música que tocam os despejados de João é o oposto extremo do Brasil que ele inventou.

Tenho tinitus desde cedo na vida. O meu é um som agudo e estridente, uma polifonia imitativa com uma camada de chiado sobre outra de zunido – soa como se eu vivesse um tempo em que tivesse sido extinta a Rádio MEC do Rio e sobrado, no mostrador do motobras do táxi amarelo que cruza a Rio Branco, um ruído fora de sintonia, ininterrupto, latente, que, se o tédio permitir, invade o cérebro.

Boa música compensa tinitus, mas João saiu do ar e os olhos já não podem ver.