Stultifera Navis

A enorme e torta canoa

desce a corredeira.

Sacode e roda entre pedras e toras

rumo à catarata.

A canoa não vai vazia para o abismo.

Estão todos juntos.

Mas eles se acotovelam e se amontoam,

gritam e berram, vociferam

contra as árvores que estendem seus galhos.

Contra as margens do rio.

 

caio leonardo

22 de março de 2018

Adágio em Sol Menor

Preciso de pouco.

A vida é que tem me dado muito.

Minha alma cabe

sem esforço,

ainda que comprimida,

nesse cantinho estreito

embora ensolarado

entre Barcelona

e Saint Paul de Vence;

mas também se vira

entre Juquehy

e Paraty;

e aceita

sem relutar

um chão duro qualquer

tendo como travesseiro

dois Hemingways e um Cortázar.

Para me cobrir,

basta um Capote.

E se um dia

nem mais ler eu puder,

que me encontre recostado

entre damas-da-noite,

– as memórias me bastarão.

Mas quando nem mesmo

a memória me sobrar,

então que o acaso faça chover

sobre mim em São Vicente,

que a chuva de lá sempre foi

e sempre será

o meu mais suave acalanto.

Ela bastará,

garoa ou tempestade,

quando eu não saiba mais de mim.