A Musa Impassível

“A Musa Impassível”, Victor Brecheret, 1923 – Pinacoteca do Estado de São Paulo

 

Quando Eldorado ainda era Xiririca, surgiu Francisca Júlia. Em 1891, ela ganhou São Paulo aos 20 anos, como poetisa e crítica literária. Fez sucesso antes mesmo de seu primeiro livro ser publicado. No Brasil do século 19, obviamente não haveria de ser fácil uma mulher firmar-se como poeta. Como era Brasil, as dificuldades que ela enfrentou precisavam conter, em algum ponto, uma dose qualquer de histrionismo: Dois escritores de renome se esbofetearam na imprensa sem saberem que por causa dela. João Ribeiro assinou como Maria Azevedo um ataque a Raimundo Correia, que ele achou que usasse “Francisca Júlia” como pseudônimo.

Nem passou pela pena do poeta que a pena de uma poetisa pudesse aquilo tudo.

Francisca Júlia foi grande, foi intensa, misteriosa, melancólica, foi parnasiana, foi simbolista e, se não chegou a ser modernista, os modernistas a achavam grande.

A crítica literária parece ser unânime quanto à altura que ela alcançou como parnasiana – seus contemporâneos a incensavam. Suas rimas internas são cristais em que o leitor tropeça surpreso no caminho, e seus enjambements são desfiladeiros curvos que o levarão vertiginosamente ao reverso do verso seguinte.

Sua abertura ao simbolismo, no entanto, marcou a entrada do esotérico em sua vida. E foi doloroso.

Com 35 anos, deixou de escrever e de frequentar as rodas literárias, o misticismo foi tomando espaço no seu pensamento. (Arrisco imaginar, da distância imensa que há entre mim e o que foi a sua vida, que o desapego pregado pelo budismo possa ter tido algum papel nesse seu recolhimento). Não foi uma vida tranquila, intelectual e espiritualmente, a que decidiu ter. Mudou-se para o interior, foi morar com a mãe, deu aulas, cuidou da casa. E com a mãe voltou a São Paulo em 1908 e, lá, um ano depois, casou-se com um poema.

Ah, se não é um poema o tanto que há de sublime em alguém se apaixonar pelo telegrafista da estação do Lajeado, na Estrada de Ferro da Central do Brasil; ele, um senhor de 45 anos que atendia por Philadelpho Edmundo –  ou, talvez, por Sr. Munster, sobrenome que causa a saborosa dúvida de ter ele sido anglo ou saxão. Imaginar como a poetisa encontrou essa personagem seria insondável, se não se soubesse que a mãe dela havia sido transferida para a escola que ficava na tal estação do Lajeado, a atual Guaianazes.

Francisca Júlia afastou-se dos poetas, mas se casou como poeta e morreu poeticamente, horas depois do marido, por overdose de calmantes.

Acorda!
que o cortejo dos amores trágicos
não cessa

O enterro de Francisca Julia e Philadelpho tornou-se um acontecimento nos meios literários, já acossados pelos modernistas. Era 1920. A história registra a presença de Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti…

Três anos depois, estava pronta a homenagem dos modernistas à parnasiana: uma escultura de Victor Brecheret, em mármore, que levava o nome de um poema dela, A Musa Impassível. “Mármores” é o nome do seu primeiro livro, que é onde está aquele poema. A Musa Impassível, que viera em Mármores, ao mármore voltava.

A escultura ficou junto à sua lápide no cemitério do Araçá, esquecida, até que a filha de Brecheret, Sandra,  numa passagem por lá, deu-se conta de que aquela era obra do pai, isso em 1992. Em 2006, a Musa foi levada à Pinacoteca do Estado de São Paulo, onde foi restaurada.

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Estive diante da Musa Impassível, a de mármore, cinco anos depois da sua chegada à Pinacoteca. O que vi foram 2,80m de formidável feminilidade, que se inicia com a sutileza doce do pé esquerdo levemente soerguido e apoiado para trás no bloco em que ela se sustenta, ela um losango do qual brotam volumes que revelam a expressão arrebatadora do corpo dessa musa coberto por um manto entre evanescente e pesadamente úmido, o tecido se apegando aos joelhos unidos que dali desenham o vértice que se abre para caber os imensos quadris que abrigam o ventre protraído que vai se fechando no torso que suporta seios impossivelmente eretos que conformam o colo que faz surgir a cabeça que é onde, só então, surge o único elemento impassível da musa: seu rosto. E é do alto do seu pescoço que o olhar despenca numa linha afirmativamente sinuosa, guiada pelas abas das vestes que se derramam coladas ao centro, e que são os lábios unidos, repousados, de uma portentosa vulva.

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Musa Impassível
I

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d’ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d’alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.

II

Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o Impassível mora.

Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.

Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,

E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.

(1895)

As Cidades e o Invisível

Somente nos relatos de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidos dos cupins
Italo Calvino,  As Cidades Invisíveis
Que cidade é esta em que tantos vivem,
mas que só você vive,
que só você vê?
É sua a cidade dos que olham para cima?
É sua a cidade dos que olham para o chão,
para as calçadas,
para os degraus?
Ou a sua cidade é a dos que não olham, dos que não vêem?
É sua a cidade em que a barriga pesa até libertar uma nova vida,
ou aquela em que não se pode falar em barriga?
Conte como é a cidade dos que se doem de amor
e a das para quem o ato de amar dói.
Deixe que saibam da cidade dos que ouvem outros sons
e da dos que não ouvem som algum.
Da dos que tocam sons que não se ouve
e a dos que não emitem sons.
Como é a sua cidade, se sua cidade é sua cor?
Como é a cidade
cor de sangue
cor de rosa
estilete e neon
Como é viver na cidade às portas do reino humano de Azeroth?
Venha revelar o território demarcado pelas bandeiras belicosas da bola
Mostre o mapa tatuado na sua carne
Trace as entranhas urbanas
do seu mundo sobre duas rodas
Ou talvez seu domínio tenha duas mais
Ou sua cidade sejam muitas, costuradas por seis, oito, quantos eixos?
Sua cidade é o baixo?
Sua cidade é a zona?
Sua cidade é a vila?
Sua cidade é um império que sacode os quadris, imperatriz?
O viaduto sobre a sua cabeça:
diz de viver sob ele
Vem, homem da cidade-beco,
Aprochegue-se mulher que dorme sobre o meio-fio da via expressa
 que nem mais levanta os olhos
que nem mais tem o reflexo
de se defender da freada
da buzina
da batida
do seu nada
conte o que ainda vê
fale do que ainda importa
talvez uma margarida
talvez uma presilha
talvez o ato de esquecer: o que só você saberá
Que foi feito da Cidade Náutica?
Como é nadar na Cidade Ocian?
Que resta da Cellula-Mater da Nacionalidade?
Sua cidade é uma represa
ou uma represa a sua cidade?
Fale da secreta cidade das casas ornadas de ciprestes
Segrede as falas inauditas que correm entre os últimos ciprestes
Entoe a revelação da cidade dos homens de deus
Defenda a cidadela dos homens sem deus
Quantas cidades há num prédio de apartamentos?
Quantas cidades há num desentendimento?
Quem cantará o apagar da luz cinérea
que desenhava a Cidade-Estado do Edifício São Vito?
Aproveite e fale da Cidade da Eterna Primavera,
(o Mercado Municipal)
E você outro, desguarde as confidências daquele entorno
terra de Fagins e ratazanas do terceiro pecado.
É preciso
Sempre é preciso uma pausa
sem a qual não se perceberá
a cidade
encoberta pelo olhar viciado do quotidiano,
a cidade atrás do biombo fosco da indiferença
a cidade apenas tímida,
hipodérmica
recôndita:

a cidade invisível.

Caio Leonardo 2004/2017

(Texto originalmente concebido em 2004, como apresentação de uma comunidade do Orkut, rede social abandonada como um bairro que a especulação imobiliária mandou esquecer)

Como Esperar Sentado na Toscana

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O voo Florença-Paris tinha sido cancelado. A companhia aérea decidiu embarcar os passageiros por Pisa. Todos foram transportados de uma cidade a outra de ônibus. Todos, menos um. O ônibus não era acessível.

Tentaram uma van. Demonstrei, meio descadeirado, que tampouco. Sorrisos, lamentos. Que esperasse. Esperei.

Esperei tanto, que achei que tivessem desistido de mim. Não estranharia.

Dividindo comigo o latifúndio que era o estacionamento deserto, uma banda de rock se entediava a dois tropeços de mim. Eram quatro, cara de atropelados pela noite, sentados sobre caixas de som, instrumentos, coisas de saltimbancos. Não sei se chegavam ou se partiam. Esperávamos. Três desembarques depois, já éramos uma família – dessas em que ninguém conversa com ninguém.

Eu estava tranquilo, sei esperar, de alguma forma iam resolver aquilo. Um tailleur verde-claro vinha falar comigo, lamentava a demora, eu respondia com um sorriso: Não tenho pressa. E os saltos altos iam de volta. Surgia um quepe com crachá, soprava um Scusi… E sumia.

A banda, no seu silêncio de Sepultura, talvez competisse comigo para ver quem escapava primeiro do estacionamento que estava de novo vazio. Batia um vento surdo quando o Jaguar ultrapassou a cancela distante e deu uma volta solene pelo pátio.

Rock stars, pensei.

O Jaguar passou pelo embarque, pelo desembarque, se aproximou e parou diante de…mim. Esta era a hora em que uma baqueta podia ter caído no chão. O tailleur e o quepe se perfilaram. Ele se adiantou, abriu a porta, sorriu e me convidou a entrar.

Virei para os roqueiros, que riam desestrelados, e lhes disse, rindo ainda mais:

__ This is how you lose a flight.