Caminho de Konlé

Toca a meia-noite da passagem de ano, e a pessoa está sozinha. Num carro. Numa rua sem saída. Procurando uma vaga inexistente. Que não existe nem ali, nem em qualquer outra parte da ilha onde essa pessoa está. Sim, essa pessoa está numa ilha. Sozinha. Mas só ela está sozinha, porque toda a ilha está em festa. Gritos e rojões e brindes e gente alegre por todo lado. Menos naquela rua sem vaga e sem saída, à meia-noite, na passagem de ano.

A pessoa sou eu. Dei meia-volta e segui até a entrada da rua sem saída. Saí dali rindo de mim:

“You started the year with bad decisions” – fui repetindo para mim, com várias entonações, cada vez mais tenebrosamente britânicas. No carro. Sozinho.

Mais vinte minutos – que são vinte minutos para quem estava no trânsito fazia hora e meia, tentando atravessar 5km? 5km de gente, levas e levas de famílias, de rapazes, de meninas, de crianças de colo misturadas a baldes de cerveja e sacos de gelo e oferendas a Iemanjá; 5km de gente indo em direção ao mar.

Mas que são outros vinte minutos, quando se tem um ano novinho de tudo, começado ali mesmo, inteirinho pela frente? Mais vinte minutos e encontrei um carro que manobrava para sair de um vaga. Três carros logo se enfileiraram atrás de mim. Eu podia sentir que o primeiro orava, o segundo rogava pragas e o terceiro, mais pragmático, buzinava.
Contra todos!, estacionei. Estava a longos três quarteirões da casa aonde ia.

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O povo agora voltava da praia.

Aquele povo todo. Todas as cadeiras de rodas e todos os carinhos de bebê já vendidos no Brasil estavam vindo da praia, empurrados por tios, pais, genros, noras, netos, todos bêbados. E quem não empurrava uma coisa, puxava outra. Puxava o carrinho de compras com as garrafas, as bolsas e a blusa que a mãe tinha mandado levar; puxava restos de rituais em que só acreditavam ali, àquela hora; puxava a saia para baixo, a calça para cima; puxava o marido bêbado, puxava um samba, puxava fumo.
E eu, na contramão.

Abri uma picada a golpes de Feliz Ano Novo, com-licenças e perdões, e ouvia de volta eventualmente o oposto disso. Nenhum estranho me abraçou chorando – se acreditasse em sinais, esse seria o de que a sorte pudesse estar mudando.

A casa então apareceu, majestosa e iluminada – do lado de lá do mar de gente. E o mar de gente estava agitado, logo tudo aquilo seria uma enorme ressaca. Os fogos da meia-noite davam lugar ao barulho surdo das ondas brancas, espumantes, uma arrebentaçãode calças e vestidos e camisas e escolhas desastrosas em branco, peças do tecido de esperanças fugazes de ano novo, que logo amanheceriam debaixo da cama ou da pia, debaixo do chuveiro ou de lamentações – é 2016 no Brasil.

Parei. Contemplei por um minuto a correnteza fazer o seu arrasto, enquanto recuperava o fôlego. Tomei posição, mergulhei. Atravessei a arrebentação com braçadas indecisas.

Ao chegar ao outro lado, um portão me ordenou que parasse. Um portão alto, solene, novamente branco, mas de um outro branco, um branco de solidez, de porto seguro – finalmente. Suado, descabelado, aturdido, procurei a campainha em meio à parede de hera, chamei e, antes de dizer alguma coisa pelo interfone – algo como meu nome ou “socorro” – tudo se abriu.

Lá dentro, longe ainda um pouco da rua, ombrelones cobriam mesas onde pessoas sentadas conversavam numa animação serena. Um enorme cisne inflável navegava pela piscina – crianças na água, adultos no champagne. Subi o aclive suave que levava a todos, procurando o primeiro rosto conhecido. O de Gatsby, talvez.

Encontrei o de Prisciliana.

Fui recebido com um sorriso imenso e um abraço afetuoso, distribuímos desejos para 2016 e, como uma cortina que cai, entramos.

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*Photo by Jon Baird, via artdoxa.com https://www.artdoxa.com/jonbaird/large?page=5

**Foto Kris Rezende: Gabriel navega sobre o cisne na casa de Prisciliana Aflalo, em 1º de janeiro de 2016.