Tráfico Aéreo

Em meio à alta do dólar e as muitas crises em andamento, dois homens de negócio brasileiros encontram-se por acaso em algum aeroporto pelo mundo:

_ Fica muito tempo por aqui?

_ Não, só de passagem.

_ Foi extraditado para onde?

_ Suíça. E Você?

_ Ah, vou ficar por aqui, mesmo.

_ Quantos anos?

_ Estou chegando. Audiência amanhã. Você?

_ 5 anos mais US$ 50 milhões de multa.

_ Tive que devolver US$ 180mi. Dá um dó, rapaz.

_ Nem me fale. Tempos horríveis. Não se tem sossego.

_ Sossego nenhum. Sua mulher vai bem?

_ Vai comigo. Minha filha, também.A gente vai se ver pouco, mas é bom saber que a família continua junto. Três anos cada uma. Pouquinho. Melhora o inglês, se for ver.

_ Melhor assim, né. Minha filha vai continuar em Harvard, encaixa doutorado com o mestrado. Vamos ficar livres quase ao mesmo tempo.

_ E a sua mulher?

_ Essa já não é mais minha, por assim dizer. Preferimos delação premiada. Vai ficar só dois anos, mas na Itália. Domiciliar. Lago di Como. Namorado novo é deputado da turma do Berlusconi. Alguém precisava cuidar do patrimônio. Ela ganhou no cara ou coroa, se bem que eu acho que ela me engambelou com aquela moeda de 1 euro.

_ Nada! Foco no negócio. Arranjo bom, esse. Aumentou muito a sua pena?

_ Ainda vou saber, mas daqueles US$ 180 mi, cento e poucos foram por conta da língua solta dela. Era pra ser como Você, uns cinquenta, tava bom demais.

_ E o resto?

_ Ah, isso está por aí, pelas nuvens. Nuvem por nuvem, melhor esperar a tempestade passar.

_ Melhor, sim. Investiu em quê?

_ Em título do tesouro, oras. Não dá pra confiar na Petrobras.

_ Até que dava, enquanto durou. Fora do Brasil a remuneração do capital é uma piada.

_ Uma piada!

_ Essa crise ainda vai longe, e os juros ainda mais longe!

_ Que seja eterna enquanto dure!

_ Salve, poetinha!

_ Saravá, compadre. Essa tua tornozeleira é daqui?

_ Não, é Suíça. 30cm de margem de erro, só. Nem dava pra buscar o jornal na soleira da porta em Saint Barths.

_ A minha machuca pra danar. Mas chegando à cela acaba esse martírio. 

_ As daqui são boas?

_ Primeiro mundo. As de lá? 

_ Ainda não sei, mas boas mesmo são as da Dinamarca. 

_ Primeiro mundo. 

_ Primeiro mundo. Vamos lá, que a escolta já se levantou.

_ Pensamento positivo! Continue esse sucesso de sempre!

_ Nós todos, meu caro. Nós todos!

_ Deus te abençoe!

_ Deus no comando!!

_ Boa estada!

_ Boa viagem!

Caio Leonardo

3 de novembro de 2015

Um Mundo Flutua pelos Arredores da Avenida Paulista

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Jovem Dama Soprando um Apito – Utamaro Kitagawa (1753 -1806 – Edo)

Os príncipes imperiais do Japão estão no Brasil, e trouxeram um presente suntuoso: Uma mostra de Ukiyo-e.

Ukiyo-e significa literalmente “imagens do mundo flutuante”, esse mundo flutuante sendo ora a fragilidade ritual da sensualidade do ambiente das gueixas, o hedonismo da era Edo; ora instantâneos da vida na cidade ou da relação do homem com a natureza.

Ukiyo-e toma forma por meio de gravuras cuja excelência técnica alcançou níveis de preciosidade, com grandes mestres desde o século XVII até o XIX. Pois esses grandes mestres estão aqui. Hokusai, Harunobu, Hiroshigue, Utamaro… A exposição é aberta com aquela que é a obra mais icônica da arte japonesa: A Grande Onda de Kanagawa, de Hokusai.

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A Grande Onda de Kanagawa – Hokusai Katsushika (1760 – 1849 – Edo)

No seu tempo, muitas das gravuras do gênero serviram de posters e propaganda de espetáculos de teatro ou de bordéis, algo a que, na França do século XIX, Toulouse-Lautrec viria a se dedicar.

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Chuva Repentina sobre a Ponte Shin-Ohashi e Atake, Hiroshige Utagawa (1797-1858 – Edo)

Toulouse-Lautrec é apenas um grande artista ocidental do século XIX cujo nome pode estar numa mesma frase em que o Japão seja citado. Peças vindas do Japão invadiram a Europa naquele século. Nas suas Cartas a Theo, Van Gogh reiteradamente refere-se à influência dessa arte japonesa sobre seu olhar e suas composições, ao ponto de transpor para óleo sobre tela algumas gravuras, como “Chuva Repentina sobre a Ponte Shin-Ohashi e Atake”, um Hiroshige que compõe as celebradas “Cem Vistas Célebres de Edo” (1858). Van Gogh colecionava ukiyo-e. Mais de uma centena de gravuras. À época, surgiram dois termos: “Japonaiserie”, para referir-se a itens vindos do Japão; e “Japonisme”, para designar a influência de temas japoneses sobre artistas da época, em especial os ligados ao Impressionismo.

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Ponte sob Chuva, après Hiroshige – Vincent van Gogh (1887, portanto 29 anos após a publicação das “Cem Vistas Célebres de Edo”)

A exposição oferece 30 gravuras. Dessas, uma dezena são novas impressões a partir das matrizes criadas por alguns dos maiores mestres dessa arte. Parece pouco. Mas ver um van Gogh ou um Monet basta para tirar o fôlego do observador. Pois essas gravuras tiraram o fôlego de van Gogh e de Monet.

O visitante verá também gravuras de artistas contemporâneos, tanto do Japão como do Brasil. Os brasileiros foram escolhidos anos atrás por Yutaka Toyota, em projeto conjunto com uma fundação. Entre eles, estão Claudio Tozzi, Antonio Dias, Gilberto Salvagor e o próprio Toyota, que também trouxe quatro dos oito blocos de madeira que compõem as matrizes usadas por ele para a composição de uma gravura feita especialmente para a mostra. A impressão de todas as gravuras foi feita por master printers japoneses, no Japão. A depender da técnica utilizada, cada tonalidade vista numa gravura corresponde a uma dessas matrizes, e são as sucessivas impressões justapostas sobre um mesmo suporte (papel) dessas várias matrizes que vão compondo progressivamente a imagem – do mundo que flutua na mente do artista.

A exposição está no lobby do Hotel Tivoli Moffarrej, na alameda Santos, 1437, São Paulo. E fica até Novembro.

Se eu pudesse, peregrinaria até lá todo dia, até o último dia.

Caio Leonardo

29 de Outubro de 2015

Pardon, Simone

simonedebeauvoir505_112912031304_0 Pourquois moi?

O ENEM de 2015 demonstra que o analfabetismo funcional não atinge apenas os estudantes, mas a Nação inteira.

É constrangedor ver a quantidade de gente que não consegue interpretar um texto.

Um povo que não consegue distinguir “sentido denotativo” de “sentido conotativo” num texto é um povo funcionalmente analfabeto.

E povo, aqui, não é usado no sentido conotativo de “gente pobre”, “gente humilde”; povo, aqui, é usado no sentido denotativo de “conjunto de pessoas ligadas por laços territoriais, culturais ou religiosos”.

Ou seja, o povo brasileiro, nós todos, somos incapazes de discutir um texto a partir do sentido que esse texto tenha ou possa ter.

É constrangedor ver a quantidade de gente que acredita que, na citação feita a obra sua no ENEM, Simone de Beauvoir renegava a genitália como elemento de distinção entre homem e mulher.

É constrangedor ver que o texto de Simone de Beauvoir foi interpretado como se referido ao debate sobre homossexualidade.

Como hoje é sábado e segunda é feriado, lá vai:

Antes de tudo: pronuncia-se “Bovoárr”.

Agora, ao texto.

Beauvoir não fala ali de homossexualidade.

Beauvoir não fala ali que a sexualidade é algo que se escolhe ou que, ao contrário, é algo que não se escolhe.

Beauvoir não fala ali que ninguém nasce com o sexo ou a sexualidade definido ou indefinido.

Beauvoir não fala ali de opção sexual.

Beauvoir ali está falando disto e só disto: do papel social imposto à mulher.

Quando Beauvoir diz que “ninguém nasce mulher”, ela quer dizer que ninguém nasce sendo o que a sociedade espera que seja o papel de uma mulher:

*ninguém nasce submisso;
*ninguém nasce para cuidar da casa;
*ninguém nasce para casar, ter filhos e dedicar-se exclusivamente a isso;
*ninguém nasce para ganhar menos do que os outros só por ser homem ou só por ser mulher.

Ao dizer que “ninguém nasce mulher”, Beauvoir está afirmando que de ninguém se pode exigir desde o nascimento que faça isto ou aquilo, assim ou assado, apenas por ter nascido com este ou aquele sexo.

Ela quer dizer que uma mulher tem a liberdade de decidir:

*se quer ou não se casar,
*se quer ou não ter filhos, se quer ou não ter uma casa,
*se quer ou não cuidar dessa casa ou de qualquer outra casa,
*se quer ou não estudar, trabalhar, ir pelo mundo afora,
*se quer aprender a cozinhar,
*se quer cozinhar em casa ou num grande restaurante – ou até mesmo num pequeno restaurante, ou
* se prefere assistir TV comendo pipoca de pantufas num sábado de carnaval.

O debate que cabe aqui, portanto, é sobre o valor que a nossa sociedade dá ou pretende dar à ideia de que cabe ao homem e à mulher papéis na sociedade que são específicos e determinados de antemão.

Querem debater sobre o que Beauvoir realmente quis dizer?

Caio Leonardo

31 de outubro de 2015