Rudyard Kipling narra a estória de dois aventureiros britânicos que planejaram tornar-se reis do Kafiristão, um canto do Afeganistão, munidos de filosofia maçônica e vinte rifles Martini-Henry. Aquilo de os dois não temerem os deuses locais impressionou, angariaram uma legião de apoiadores. Um deles assumiu o trono. Ofereceram uma jovem em casamento. Ele gostou; ela, não muito: ficou aterrorizada com a ideia de dormir com um deus e, diante de todos, recebeu a tentativa de beijo com uma mordida. O rei-deus sangrou. Foi quando os sacerdotes ao lado gritaram: “Ele sangra! Não é Deus nem Diabo, mas só um homem!”.
Numa Copa já famosa por uma mordida, ontem foi o dia de ver sangrarem aqueles a quem é imposta a condição de deuses. A seleção brasileira expôs para além de qualquer dúvida sua condição humana. Perdeu e perdeu de goleada. E, ao perder de goleada, finalmente se liberta, e da pior maneira, da maldição da Mística da Canarinho, essa que impôs durante décadas a obrigação unicamente brasileira de ganhar, ganhar sempre, ganhar bem e a jogar bonito. Nenhum outro País no mundo exige qualquer coisa parecida com isso de sua camisa. Até a lei, que é a lei, proíbe a exigência de obrigação impossível.
Pois o Brasil sangrou. O Brasil mostrou sua humanidade. “Não sois máquinas, homens é que sois”, grita o lugar-comum inevitável. E o sangue vertido era vermelho, não um óleo lubrificante.
O placar de 8 de julho é, sim, libertador. Confere liberdade para aqueles a quem a carreira alça ao maior dos infernos esportivos – um inferno que há de ter tido seu fim na tarde de ontem no Mineirão, o inferno de ser escalado para envergar a camisa sagradamente maldita da seleção brasileira.
Sagrada e maldita. Sagrada, porque venerada. Venerada por devotos cruéis, que não pedem a seus deuses, mas deles exigem o cumprimento da promessa da vitória e não uma vitória qualquer, mas a vitória com espetáculo. Sagrada e maldita. Maldita, porque aquele que a vestir não pode errar. Se errar, será execrado em praça pública. Barbosa, Zico, Julio César, Felipe Melo.
O placar de 8 de julho é libertador, porque não há como apontar culpado. É um placar maior do que qualquer falha individual, maior do que qualquer esquema tático. Um placar construído, vejam só, por um time superior ao do Brasil. Sim, eles existem! E tampouco eles são deuses. Mas é preciso também dizer que foi um placar construído pelo terror pânico que tomou os deuses ensanguentados ao se virem homens e saberem que suas vidas, a partir daquele momento, seriam infernos para si e suas famílias até o fim de seus dias. Barbosa.
Os 7 gols de 8 de julho libertaram Barbosa. Mas há de libertar também todo e qualquer que tenha usado ou que venha a usar a camisa da seleção brasileira. A Mística da Canarinho foi quem sangrou. Porque a Mística da Canarinho, como toda mística, não passa de crendice. E, nesse caso, de uma crença cruel.
A camisa da seleção brasileira tem história e ontem mais um capítulo foi inscrito nela. O capítulo em que foi deixado claro a todo o Mundo e, em especial, aos brasileiros, que ninguém é infalível e de ninguém pode ser exigido infalibilidade. Sim, lembrem-se de Francisco, o papa: Ele renegou a única infalibilidade vigente.
No conto de Kipling, o homem que queria ser rei, em fuga, despenca de uma ponte de corda que é rompida a golpes de espada pelo povo irado do Kafiristão. O narrador é convencido da estória contada pelo aventureiro que sobreviveu, no que este retira de dentro de um saco imundo uma cabeça ainda coroada, porém decepada.
O Brasil não é o Kafiristão. Tem em comum com ele ser uma terra de crenças equivocadas, é verdade. Mas que 8 de julho de 2014 seja a data da libertação do brasileiro desse torpor coletivo em torno de uma Mística que se desfez diante de um adversário maior. O Brasil sangrou. Viva o Brasil.
Caio Leonardo