29 de janeiro de 2010, para o filho do seo Raul
Quando meu pai morreu, a missa de 7º dia foi na Matriz de São Vicente. Fiquei de ler a elegia que tinha preparado, mas me atrapalhei com o microfone e ninguém me ouviu, apesar dos cutucões que o padre Paulo me dava, eu todo lá concentrado e inaudível, ridículo e devastado, poeta amador a toda prova. Semana passada, morreu Jerome David Salinger, Jerry para os pouquíssimos íntimos, escritor cujo estilo busco decifrar como um filho a seu pai, imitando gestos, procurando a própria identidade no mestre. Dei de presente dois natais seguidos “O Apanhador no Campo de Centeio” à Maria Antonia, minha sobrinha, coitada.
A notícia da morte de Salinger surgiu à tarde, mas, de manhã, no táxi que peguei no Brasília Alvorada pra ir ao escritório no Brasil 21, vi, no bolso da porta, espremido atrás de um livro que fala mal do Sarney, outro de capa cinza, letras gelo, que diziam “O Ap…” A corrida toda transcorrera em silêncio até ali, silêncio quebrado com a pergunta sobre se alguém tinha esquecido o livro que mostrei . Era do taxista, mesmo. A ideia de o livro não estar perdido, de que havia um leitor ao meu lado, me encheu de uma alegria de nefelibata, que deu lugar ao que sempre se pensava quando se pensava em Salinger: como vai ser quando ele morrer? Há coisas dele escondidas? Continuou escrevendo esses anos todos?
Escrevi para amigos:
“Morreu JD Salinger. O dia que eu tanto temia chegou. Chegou antes da sua reconciliação com a humanidade. Antes de ele permitir que pudéssemos ler mais dele. Salinger foi o mestre consumado da hipotipose e do diálogo natural, superando seu predecessor, F. Scott Fitzgerald. Ninguém o superou até hoje nessas duas artes. A terceira em que era excelente, a construção de personagens infantis. Mas aqui ele tem quem esteja à sua altura: Guimarães Rosa. E só.
E agora? Ele destruiu tudo que escreveu a partir de 1960? Seguiu escrevendo? Morto, não vai mais se incomodar com a leitura acadêmica ou estereotipada que o afligiu ao ponto da reclusão, e terá permitido acesso a um legado escondido? A morte de Salinger é algo como o Apocalipse. Agora vamos saber se o mundo acabou ou se outro é que surgirá”.
Herdei esses exageros da minha mãe, Laura.
Dos contos reunidos em “Nine Stories”, o mais comentado parece ser “A perfect day for bananafish”, mas “For Esmé with Love and Squalor” e “Teddy” é que são meus preferidos: complexas construções narrativas que não deixam entrever os andaimes, as escadas, a carpintaria toda que exigiram para estarem ali, com o frescor das coisas de Salinger.
No Orkut, quem diria, tive acesso a outros contos dele não reunidos nos quatro únicos títulos publicados “oficialmente” em livro; e também a “Hapworth 16, 1924”. Eram raridades. No dia da morte de Salinger, o Twitter ofereceu tudo a todos em poucos minutos. Porém, ainda fica a angústia da dúvida sobre se haverá mais o que ler dele.
O Pira, em homenagem a esse mestre, postou para os Valami Lesz (legendário lista de discussão virtual),o poema “Funeral Blues”, de W. H. Auden. O Pira é Henrique d’Arce, que é de Piracicaba, então está explicado. Estudamos juntos no Largo São Francisco. Hoje, ele mora em Londres e dá aulas de inglês. Nos encontramos em dezembro do ano passado. Tomamos umas “pints”, enquanto eu engraxava botas, num pub barulhento e sujo em Cavendish Square.
Naquela noite, outro taxi nos levou ao Soho. Chovia uma triste chuva de resignação. Dali partimos para um breve passeio pelas memórias de uma Londres fin-de-siècle, feita de Bar Itália e Neal’s Yard; High Holborn e Sarastro, cujo dono sempre me recebia com uma taça de champagne e uma conversa absurda, porque eu não entendia coisa alguma do seu cockney com sotaque cipriota. Fiquei sabendo então que o dono morrera no ano anterior.
No poema de Auden, o autor dispensa as estrelas, manda apagar o céu, embrulhar a lua e desmantelar o sol, porque seu amor morreu. Pira e eu temos, como tanta gente, esse amor por Salinger. Lá entre os Valamis, Pira, que fez aniversário ontem, veio com Funeral Blues para Salinger, mas também para si mesmo, que ele perdeu o pai recentemente. Juntei meu balde despejado ao dele, e postei na lista a tradução que fiz desse mesmo poema. Tradução que li na Matriz de São Vicente, em 1997, como fecho da elegia a Jonas Rodrigues.
Blues de Funeral
Esquece as horas, corta o telefone.
Cala co’um osso o cão e sua fome.
Silêncio ao piano: co’um surdo tambor,
Traz o féretro, deixa entrar a dor.
Sobre as cabeças, aviões gemam sem porto,
Anunciando lá de cima: Ele está morto.
Põe um laço de crepe nas alvas pombas da praça
E note o guarda com luvas negras, aquele que passa.
Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste,
Meus dias úteis e meu domingo em festa,
Meu meio-dia e a meia-noite, minha prosa e canção;
Pensei que esse amor fosse para sempre; mas, não.
Estrelas não é mais preciso: apaga o céu.
Embrulha a lua e desmantela o sol;
Esvazia o oceano, derruba a mata;
Pois tudo agora não vale mais nada”.
Caio Leonardo, filho de Jonas, leitor de Jerry
29 de janeiro de 2010
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