BLANCHE, COM DOIS TÊS

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Blue Moon é um drink para dias quentes.  A receita clássica é refrescante – e leve . O que não deixa de ser intrigante, porque, na cena de abertura de A Streetcar Named Desire (em português, ora Um Bonde Chamado Desejo, ora Uma Rua Chamada Pecado), Tennessee Williams faz uma “mulher negra” aconselhar um marinheiro de passagem a não aceitar o Blue Moon do boteco da esquina, o Four Deuces, porque quem o bebia não voltava para casa sobre seus dois pés.

Eli, barman do Gero em Brasília, prepara sua versão com Jack Daniel’s, suco de limão, goma de açúcar e Curaçao Blue ou soda limonada, acompanhados de um cubo de abacaxi e outras citricidades. A receita clássica do Blue Moon é Malibu, suco de Abacaxi, Curaçao Blue (no topo), um splash de Grenadine, maisnum triângulo de abacaxi e cerejas, para decorar.

Devia haver uma versão bem forte desse coquetel, talvez algo com o trocadilhável Tennessee whisky do Eli, na calorenta New Orleans estival de meados dos anos 1940, época em que Williams situa a peça. Sua primeira montagem foi dirigida em 1947 por Elia Kazan, com Jessica Tandy (aos 36! Décadas antes de Titanic) no papel de Blanche Dubois, e um Marlon Brando aos 24 anos, como Stanley Kowalski. Em 1949, no West End de Londres, Vivien Leigh, dirigida por seu marido, Laurence Olivier, assumiria o papel principal, que ela depois levaria para o cinema, fazendo dupla com Brando, ambos pelas mãos do mesmo Elia Kazan.

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Kazan introduziu nas duas versões, tanto a do Teatro, como a do cinema, o naturalismo de Stanislavsky na composição de papéis à primeira vista melodramáticos. Melodrama e naturalismo são opostos, mas Kazan encontrou o tom e a maneira de conferir naturalidade àqueles que se tornaram dois ícones da dramaturgia norte-americana: Blanche Dubois, a Southern belle vitimada por uma tragédia amorosa, destituída de tudo da sua juventude de bem-nascida, entregue a autoilusões, devastada por crises nervosas e pelo álcool, que se refugia na casa da irmã mais nova, tentando conter seu caminho em direção à loucura; e Stanley Kowalski, o antagonista de Blanche, que fará de tudo para proteger dela seu pequeno mundo regado a pôquer, boliche, cerveja, amigos e um amor irascível, desregrado, violento e ciclotímico por sua esposa Stella, irmã de Blanche.

Em 2009, Cate Blanchett foi Blanche Dubois. E o deve ter sido com tamanha força, que Woody Allen resolveu recriar Blanche para que só Blanchett brilhasse, sem um contraponto forte como Kowalski. Verdade ou não, foi assim ou de outra forma que surgiu Blue Jasmine.

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Em sua recriação, Allen estabelece claramente o mesmo conflito entre a mulher sofisticada e arruinada que, em fuga do seu passado e da sua loucura, se confronta com o ambiente rasteiro onde vive a irmã com seu marido grosseirão. Mas Allen faz outras transposições bem mais sutis. Blue Moon deixa de ser um drink a ser evitado e passa a ser a música que não sai da cabeça de Jasmine, trauma relacionado à perda do marido e, com ele, a do mundo glamoroso a que antes pertencia em New York. Na peça de Tennessee Williams, Blanche também é assombrada por uma música que a remete à cena que pôs fim a seus anos dourados em Laurel – a Varsouviana, que dançara com seu marido numa festa, momentos antes de ele tirar a própria vida com um tiro ao saber que ela descobrira que ele era gay. A Motion Picture Association não permitiu essa referência a homossexualismo na versão cinematográfica de 1951.

A peça é toda permeada de jazz, assim também a versão de Woody Allen. Na peça, já embarcada na Nau dos Insensatos, Blanche, que tentara delirantemente enganar a todos em volta, canta imersa na banheira pedaços de Paper Moon, cuja letra diz “não seria faz-de-conta, se Você acreditasse em mim”. A Paper Moon de Williams torna-se Blue Moon em Allen.

“Jasmine”  também aparece no texto original em inglês da peça. Ao ser perguntada por Stella como Stanley havia se comportado na primeira conversa a sós com Blanche, esta responde que ele não é do tipo que cai por perfume de jasmim (“He’s not just the sort that goes for jasmine perfume!”).

Blue… Allen brinca com o sentido de “triste” que essa palavra tem. Na peça, Williams fecha quase todas as cenas dando indicação de que um “blue piano” vem da rua e toma a ambiente (esse efeito de música e sons vindos da rua perpassa toda a peça, mas o “blue piano” é o elemento recorrente). Blue piano. Blue jazz. Blue Jasmine, um triste perfume, o que resta de uma mulher.

Allen também recria a cena em que Williams faz sua anti-heroína apresentar-se àquele que aparece como sendo seu salvador. Allen faz dois jogos interessantes. O Mitch de Williams torna-se Dwight com Allen: dois nomes cheios de consoantes e apenas uma – e a mesma – vogal. O sobrenome de Jasmine é French (francês), enquanto o de Blanche é francês (Dubois). Ambas dão muita importância a essa origem e ambas mentem ao se apresentarem, o que as levará, ambas, à ruína total.

Allen não recria Kowalski, divide-o em dois, reduzindo à metade seu impacto: ele é Augie, ex-marido de Ginger, que perdeu a bolada que ganhara na loteria ao investir com Hal, o criminoso de colarinho branco novaiorquino com quem Jasmine era casada; mas também é Chili, o garotão que namora Ginger. Ambos são apenas uma caricatura do seu arquétipo. Kowalski, a certa altura, assume ser ninguém mas declara-se “rei de sua casa”, “como todo homem”, numa defesa contra o desprezo de Blanche por ele. O grande projeto de Chili é bem diferente e emasculado: a casa em jogo não é dele, ele quer morar na casa de Ginger, mas a chegada de Jasmine põe tudo em risco. Já Augie só quer saber de remoer a perda da bolada. Ginger não é, de modo algum, a subserviente Stella (dois nomes de bebida…). Stella aceita tudo de Kowalski; Ginger trai Chili, que volta para ela submisso mesmo depois de traído, atitude que seria impensável para Kowalski. Há uma enorme tensão sexual entre Blanche e Kowalski, que atinge o clímax na cena antológica que se resolve num estupro velado. Chili nem sequer merece maior atenção de Jasmine, cujo foco é encontrar sua salvação noutro homem, um bem de vida. Aqui, Allen contraditoriamente faz a trama perder em profundidade dramática para favorecer a performance de Blanchett.

Allen transpõe a estória da Costa Leste para a Oeste; de New Orleans para San Francisco. De uma cidade moralmente decadente para uma cidade financeiramente arruinada pela crise econômica mundial. De Leste a Oeste, em Williams e em Allen, os “residentes” estão acomodados às suas circunstâncias. São as “forasteiras” Blanche e Jasmine que buscam, na sua loucura gerada pela queda da “alta sociedade”, instilar o desconforto e impor seu modo de vida. As duas, sem sucesso.

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Williams criou um papel feminino fortíssimo, emblemático, arquetípico, ainda num mundo dominado por valores e personagens masculinos. Allen transpõe esse papel para um mundo em que a mulher é posta no centro de toda e qualquer narrativa. Quando surgiu no papel de Kowalski, Brando, ao estabelecer a então nova abordagem metodológica na composição da personagem, instado por Elia Kazan, causou uma convulsão estética na Broadway do pós-guerra. Na versão de Allen, cabe ao homem o papel de boçal, cumprido por um perfeitamente esquecível Bobby Cannavale.

Cate Blanchett, “the outstanding actress of our day” (epíteto atribuído a Vivien Leigh), impõe uma assustadora carga expressiva à sua Jasmine, uma atuação que vai marcar sua carreira como um ponto alto difícil de ser superado – por ela e por toda outra atriz viva. Blanchett é Blanche, superlattivamente.

Allen, no entanto, talvez maravilhado – quem não? – com sua estrela, perde o controle da direção em algumas cenas. Em especial, a da chegada de Jasmine de volta à casa de Ginger depois de ser abandonada por Dwight. Seu desenrolar é artificial, não se sustenta com Ginger e Chili tendo todos os elementos diante de si para perceber que algo está muito errado com Jasmine, mas… não interagem com a loucura dela.

Outro sinal dos tempos é a cena final. Williams dá a Blanche o destino que era dado aos loucos em 1947: a internação. Allen dá a Jasmine o fim que Foucault legou aos loucos: a praça.

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Blue Moon, a música que atormenta Jasmine, tem melodia de Rodgers e curiosamente recebeu três letras de Hart, para três diferentes projetos cinematográficos, nenhuma delas publicada, tudo antes de chegar à versão que hoje é um standard. Eric Clapton e Rod Stewart incluíram, nas suas interpretações, alguns versos que não constam das mais clássicas, cuja última linha diz:

“Life was a bitter cup for the saddest of all men” (“A vida era um copo amargo para o mais triste de todos os homens”). Num tempo em que homens dão lugar a mulheres, eis um verso que resume Blanche e Jasmine.

Caio Leonardo

Ave Palavra: Grogoló

caburé

“No Paranoá,

o grogoló da barragem

bole o caburé”

caio leonardo

_______

Grogoló é um hapax legomenon, ou seja, um termo que ocorreu (foi registrado) uma única vez – neste caso, não apenas uma única vez num determinado texto ou numa obra específica (o que bastaria para fazer dele igualmente um hapax), mas sim uma única vez em toda a história da língua portuguesa. Uma busca no Google não registra seu uso. Mas o Dicionário UNESP do Português Contemporâneo atravessa “grogoló” entre “grito” e “grogue”, página 693. É ali que está dito que grogoló apareceu uma única vez em literatura romanceada (LR); e ainda oferece este contexto saboroso:

“O ermo como que alargado com o trilili dos grilos, com o sapear da saparia e o grogoló da enxurrada crescia na grota”. 

Grogoló é, claramente, uma onomatopeia. Substantivo masculino, significa “som produzido por água que corre aos borbotões”. Com o haikai acima, grogoló não muito gloriosamente deixa de ser um hapax, digamos, absoluto. Ainda não está a salvo do oblívio, porque deste não está o próprio ignorado autor deste blog. Porém, um passo torto adiante foi dado para que grogoló volte à vida.

Salve uma palavra do esquecimento. Use-a.

Caio Leonardo

imagem: http://blogdovitinhoguia.blogspot.com.br/ (visitem!)

Ourivesaria Papíria

.LaPalabra

Valéria Bico de Penna – há cinco minutos

“Perdeu-se uma

palavra

de boa linhagem

A casa não é mais a mesma sem o seu

latim.

Da última vez em que foi vista

passeava com um tipo,

que a deixou escapar numa voluta.

O tipo também desapareceu,

inofensivo,

como uma palavra tolerada pela gerência.

Palavra perdida,

que falta faz

a sua prosódia alongada e suave,

seu ditongo ascendente

que dava garbo e pose

a quem a domasse em público.

Como roçavam docemente

suas sibilantes

nos lábios de quem soubesse

trata-la com jeito.”

nahuatl

Marco Antonio Vieira – há duas semanas

“Alguém, por favor, adote

esta palavra abandonada.

Foi encontrada por acaso

na rua

sobre uma folha úmida de jornal.

Com ela,

o pincel de um ourives asteca

ornaria um pendente de amate,

mas está esquecida, envelhecida

sem cuidado,

quase letra morta.”

Elyezer Sturm und Drang – há 1 minuto (editado)

“Procura-se uma onomatopeia

para uma criança triste.

Pode ser velha,

se for um frufru.

Ou na linha do tiki-taka.

Não precisa ter saúde,

pode padecer de neologismo

(ser blafântica ou pistinoica).

Não importa de onde venha,

mas que venha logo,

em tempo de fazer

o próximo verão.”

Procurem

…….Perderam-se

…………….Adotem –

eu suplico não permitam que abandonem

palavras.

caio leonardo

Sorveteria Itanhaem, 15 de novembro, esquina com 11 de junho

[ilustrações:

(1) http://www.freewebs.com/movimientosextosol/nombresennahuatl.htm

(2) http://www.proel.org/index.php?pagina=alfabetos/nahuatl

Concerto ao Ar Livre

 

 

Eu gosto de trompete e a culpa é de Telemann. Acho que foi no salão nobre da São Francisco, pompa, academia e veludo, num dos concertos que a TV Cultura gravava ali, que topei com esse nome pela primeira vez. Achei divertido, meio tecnológico, meio heróico, coisa de ouvido de criança educado por Hannah Barbera e Marvel Comics. Telemann em vida foi mais famoso que seus amigos Bach e Haendel, o que não é pouca coisa. Quem conhece sua obra vai achar estranho eu gostar de trompete por causa dele, que compôs de tudo, e, no meio de tudo, alguma coisa para trompete. Mas foi essa alguma coisa que acabei achando na Musical Box. 

A Musical Box, que não existe mais, ficava na praça Villaboim, assim como eu. Eu sempre ficava lá nos fins de semana. A praça era um pedaço de Paris em São Paulo, uma Saint Germain des Prés tomado de judeus e descolados. A praça no centro era um pequeno jardim em que crianças e mães e babás brincavam e cuidavam, espalhadas pelos bancos que surgiam aqui e ali, nos caminhos sinuosos demarcados por canteiros de poucas flores em chão de terra batida. Árvores pequenas se equilibravam nos canteiros, um pouco intimidadas por aquela que tomava a cena, de tronco largo e que subia alta, com galhos que irradiavam por todo a praça lá embaixo, oferecendo sombra e lentidão a uma São Paulo que parava debaixo dela para respirar e dar bom dia ao vizinho da rua Rio de Janeiro ou Pernambuco. Essa árvore recobria a banca de revistas que ficava, e fica, em frente ao sinal de trânsito e a faixa de pedestres, que levava até mim, figura incrustada nalguma mesa do Caffè Romano, taça de vinho tinto esquecida sobre a mesa e quase sempre o cappelini ao molho branco que vinha com um toque um tanto snob de salmão e caviar. Vinho é ainda hoje um gosto por adquirir; mas permanece o hábito de sempre pedir o mesmo prato nos mesmos lugares. 

Devo à praça Villaboim parte da educação dos meus sentidos, aquela que depende de um contato com o andar de cima. Ali na Musical Box, uma “loja de discos” comum, não fosse a qualidade do que vendia, encontrei de tudo que me ensinou a ouvir o que já havia lido ser bom, mas não sabia por quê. Charlie Parker, Dinah Washington, mais óbvias; coisas escondidas que descobri ali mesmo, como Eleni Karaindrou e sua trilha para Ulysses’ Gaze, um bálsamo; coisas tétricas como Gorécki e seu lamento para o holocausto (mamo, nie placz…); coisas mundanas como Pet Shop Boys; líricas e momentosas como The Smiths – estou falando da década de 1990, eu sempre atrasado dez anos em tudo. The Smiths me ensinou a encontrar poesia no universo homossexual, passo que foi tão difícil para mim como encontrar poesia no som da língua espanhola. Educação dos sentidos e para o Outro.

O sentido do gosto foi apurado no Caffè Romano, que também não existe mais. Ali, aprendi, por exemplo, o gosto de cada licor, um por um trazidos a mim na garrafa, para ler o rótulo e aprender sobre ele, almoço após almoço. As garrafas vinham das prateleiras em vidro e espelhos e cores, tudo emoldurado de alguma forma que a coisa resplandecia em dourado, especialmente com a luz do meio da tarde iridescendo tudo que havia atrás do balcão, ele mesmo no entanto sóbrio e revestido de couro marrom escuro em capitonê.

Maraska, se querem saber. Maraska se tornou o meu preferido entre os licores. E quando veio a guerra dos Bálcãs, morri de medo que, entre tanta desgraça, Zadar tivesse sido destruída, e então Maraska nunca mais. Foi só em Brasília, quase uma década depois, que um casal de diplomatas, ela linda como aquela gente de Hrvatska nasce para ser, me presenteou com uma garrafa de Maraska, que portanto ainda existe, e está aqui do meu lado para provar, nos dois sentidos:

Original
MARASCHINO 
LIKER OD ORIGINALNOG DESTILATA VISJNE MARASKE

 

Na entressafra, fiquei com Drambuie, que aprendi a beber com gelo picado em vaso corto noutro café, em frente ao palácio real de Madrid em obras, enquanto a doce e sorridente Louise passeava por ali em volta, investigando maravilhas, 1997. 

Eu preferia a mesa que ficava ao lado da parede de vidro, de ponta a ponta da entrada do Caffè, de onde podia ver a vida passar, as jovens senhoras e seus cachorrinhos, as lições de elegância no gesto e no trato que aquela gente me deu. Sônia Gonçalves, a grande dama do mundo da moda, num certo domingo de sol, ela toda de branco trazendo flores do campo nos braços, Sônia sempre com flores, reclamava que estavam todos de preto num dia lindo como aquele. Era 16 de agosto de 1992, e o Brasil pedia o impeachment de Collor.

Não, não aprendi nada na praça Villaboim sobre vinhos. Isso foi com o Roberto Smeraldi, que também foi quem me ensinou o que é e me ofereceu bottarga, o que basta para eu dever eterna gratidão a ele, se não a devesse por tanto mais. A praça Villaboim me abriu os ouvidos e apurou meu gosto, corrigiu meus gestos e minhas roupas, baixou o tom da minha voz e me ensinou a olhar como quem sabe. Fernando Moraes, o escritor; Maurício Machado, o último dândi; um dia, Paulo Freire; um dia, Milton Santos; muitas vezes, Fernando Henrique Cardoso e Ruth; uma vez, Patrícia Pillar ainda solteira e sozinha na mesa ao lado; várias vezes, a torcida do Corínthians descendo em direção ao Pacaembu, ou de lá voltando; e quando eu corria até lá no meio da semana para o almoço, podia ver as estudantes da FAAP, que davam a sincera e precisa impressão de que aquela faculdade só admitia meninas, e meninas lindas, charmosas, bem vestidas e de tanto bom gosto, que nunca me davam bola. Que tipo de prova era um vestibular da FAAP?

Na praça eu lia Cortázar e a coisa toda saía de prumo, com aquele estranhamento que Julio conferia a tudo e a todos. Para lá eu seguia depois de achar alguma coisa nova na livraria Cultura, ou na Duas Cidades, que também não existe mais, porém ficava mais para o centro, na Bento de Freitas. Eu sempre com livros no colo na Villaboim, como sempre em todo lugar. Eduquei os olhos atulhados de esquerdismo, a doença blablablá do comunismo, para aprender a mesclar o olhar crítico a esse mundo outro da burguesia paulistana, sua sofisticação cosmopolita, seus mundos de sons, saberes, sabores. Quanto tateei por ali, em tantos sentidos…

Eu chegava sozinho, almoçava no Caffè, depois ia para o Nabuco, que, claro, não existe mais. Pegava uma mesa na calçada, e começava a festa. Não precisava marcar nada com ninguém. As pessoas simplesmente vinham e a mesa ia crescendo. Várias vezes passei mais de onze horas num mesmo dia ali na praça, as mesas sendo juntadas depois separadas, conforme o povo ia a vinha. Assim era que, às dezenas, pessoas cultas, divertidas e, a partir de algum momento, irremediavelmente borrachas enchiam de novas referências e novos prazeres meus ouvidos e olhos atentos ou embriagados, quando eu mesmo não oferecia meu tato e minha boca embriagados a alguma moça incauta, todo mundo sabe que São Paulo é um perigo.

Com o rumo que me dei, perdi a praça. Na Villaboim, eu hoje não existo mais. Em Brasília não tem praça, não tem charme, não tem elegância, não tem jovens senhoras passeando com seus cachorrinhos do lado de lá da porta de vidro. A falta que faz essa coisa “cidade”, que Brasília não tem. Olho agora pela janela, vejo o horizonte, os ciprestes, os pinheiros e os abetos que me separam do palácio da Alvorada e do lago Norte. Uma visão plácida, com este céu de tirar o fôlego com sua imensidão. Mas não vejo uma alma, a não ser aqueles dois na lancha pequena que passa agora. Deve ser o Claudinho.

 
 
caio leonardo
 
*texto publicado em 16 de maio de 2009, em 6loggers.com, projeto de escrevinhação coletivo hoje merecidamente extinto  por falta de leitores e de escritores

Simetrias existenciais

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Em Santos, o terreno é pantanoso, cede. Por essas e outras, muitos prédios erguidos na orla da praia na década de ’70 são famosamente inclinados. “Eles se cumprimentam”, vai dizer um caiçara. A cidade é cortada por canais feitos para drenar o terreno, numerados do Sul para o Norte da ilha. Na esquina da praia com o Canal 4, fica um desses prédios, enorme, na minha memória ainda amarelo, que correu o risco de desabar e precisou ter sua base, dizia uma lenda, congelada.

Mas minha memória é esquerda e põe no térreo dele um restaurante estiloso chamado Cibus, que na verdade ficava noutra avenida. Fui descobrir recentemente que “cibus” é “comida” em latim. Ou seja, o lugar chic de Santos chamava-se “Restaurante Comida” – algo como um edifício chamar-se “Prédio”, o que Santos não demora a oferecer. Na avenida Ana Costa fica o Edifício Palazzo. Palazzo em italiano…

No térreo de verdade daquele edifício no Canal 4, ainda funciona um bar que é assumidamente uma espelunca, outra palavra latina, que significa “caverna”. Santos tem o seu Cavern Club. Passei ali noites inesquecíveis, outras de que não me lembro, algumas que é melhor nem lembrar. Ali, vi e ouvi tocar várias gerações de roqueiros locais, liderados por essa força da natureza que é Julinho Bittencourt. A turma do Charlie Brown tocava lá. Pelado, o baterista, sempre aparecia. Meu irmão,Allex Bessa, também tocou seu teclado naquele palco apertado. Nome do lugar? “Bar do Torto”. Eis aí um nome perfeito.

——-

Este foi um fim de semana pantanoso para mim, aqui em brasília. Passei todo ele com dores fortes no ombro e no pescoço. Para consertar, tentei congelar a base da dor com um emplastro. Adiantou pouco. Não conseguiria cumprimentar ninguém. Fiquei dois dias na minha caverna, sem sair do prédio, meio que pelado, e tudo que fiz foi comida (em latinha) e, entre um canal e outro, ouvir a entrevista a Elvis Costello do roqueiro Lou Reed, aquele bardo torto.

Santos não sai de mim.