Ouve-se repetidamente na cobertura pela imprensa brasileira e internacional, e agora pela boca do próprio ministro Gilberto Carvalho, a quem cabe precisamente a articulação com movimentos sociais, que ninguém sabe definir de onde veio esse movimento que tomou as ruas. Estranho, porque a origem não é segredo. Está no Movimento Passe Livre – MPL. Mas… o que o MPL fez para ter o efeito que conseguiu? A resposta é: ele meteu o dedo no botão “post”.
Uma novidade consabida do MPL é ele não estar alinhado com sindicatos, nem com partidos, menos ainda com ONGS. Mas há quem, parece, não deu a devida atenção ao fato de o MPL estar, sim, alinhado com movimentos similares, que protagonizaram mobilizações em várias partes do mundo, embora com agendas mais urgentes e relevantes do que a que o MPL escolheu para debutar no Brasil. O MPL acompanhou o Occupy Wall Street, os Indignados, a Primavera Árabe e outros protestos de impacto global. Estudou seus métodos de organização, articulação, mobilização, comunicação e ação e reação nas ruas. Notou que nenhum desses movimentos tem líderes, que são extremamente ágeis e articulados, capazes de gerar mobilizações com grande rapidez, intensidade, extensão e impacto – e todos têm em comum a organização e a tomada de decisões, ora a partir, ora por meio das redes sociais.
As redes sociais estão no óbvio cerne de tudo que se passa no Brasil relativo aos movimentos de massa de junho de 2013.
O conhecimento adquirido pelo MPL nesses contatos ou nessas observações aparentemente incluiu estratégias de defesa dos manifestantes, que se veem repetidas nas imagens de diversas, dezenas de ações desses grupos cobertas pela mídia.
Essa relação à distância entre MPL e outras “redes de mobilização social” evoluiu, no nosso País, para a estruturação de uma organização interna horizontal, ou seja, sem líderes, sem sujeição a qualquer ente externo, portanto apartidária, e constituída, faute de mieux, em torno da temática da mobilidade urbana. Em vista da identidade pontual de agendas (e de público), duas bandeiras partidárias aproximaram-se mais evidentemente do MPL, sem jamais terem conseguido obter hegemonia ou qualquer coisa parecida com controle ou ascendência sobre tomadas de rumo e decisão – são elas o PSTU e PSOL. Suas bandeiras viriam a ser proibidas em todos os futuros protestos protagonizados ou gerados pelo MPL.
Estabelecida a pauta e os meios, era hora de ir às ruas, testar seus músculos. Verificar se, no Brasil, obteriam o mesmo sucesso dos seus semelhantes.
O MPL vinha atuando já havia algum tempo contra aumentos em tarifas de transporte público, com sucesso nalgumas cidades, até que adveio o aumento em São Paulo, capital.
O MPL foi novamente às ruas, com o seguinte modus operandi mais aparente: Articulou-se por meio das redes sociais; angariou ali simpatizantes; marcou dia e hora; mas definiu o local e o itinerário em cima da hora, para despistar a polícia. Teria dado orientação sobre como proceder ou reagir? Um bom público compareceu. Sempre muitos mais do que seus membros “nucleares”.
Sua primeira performance surgiu para a opinião pública via mídia como a de um grupo raivoso, agressivo, pronto para confronto com a polícia e com arroubos de ataques a patrimônio público e privado. Foram registrados vários atos definidos, em uníssono, como vandalismo pela imprensa, pelo Governador do Estado de São Paulo e pelo prefeito da Capital. Vozes (se não há líderes nem quem porte a voz do movimento, como chamar quem fala por eles, senão espectralmente de “vozes”?) negaram ter agido com agressividade ou violência. Outro dado relevante para o que viria a ocorrer em seguida: policiais foram feridos nesses confrontos. Transeuntes, também.
Neste ponto, a opinião pública parecia francamente contrária ao movimento. O governador os qualificou de baderneiros e prometeu reação enérgica de sua polícia. O prefeito afirmou que as reivindicações eram ilegítimas, porque, em campanha, fora prometido que o aumento de tarifa seria abaixo da inflação, e assim havia sido feito. Foi posto em evidência que a demanda dos manifestantes era contra um aumento de 20 centavos – um vintém. A legitimidade do movimento estava questionada. Sua autenticidade, também, dado o extrato social aparente dos manifestantes, que não indicava origem condizente com quem sofresse com o aumento; mas igualmente porque a insurreição contra o aumento não se repetia na periferia, nos bolsões onde a massa de usuários de transporte público se encontrava e se encontra.
Aqui, falo na primeira pessoa. Critiquei o movimento, nas próprias redes sociais, por essa inautenticidade e por estar gerando uma onda sobre a qual não tinha controle, nem de conteúdo (Sua pauta de reivindicações resumia-se à revogação do aumento de 20 centavos), nem de forma (Pacífica? Confrontacional? ), nem de extensão (Quem participa? Se todos, como manter ordem unida sem liderança?), nem de interação com a política institucional (Apartidários, pareciam também rejeitar interlocução com tomadores de decisão: não negociavam). Critiquei, ainda, a ingenuidade de seu apartidarismo: o serem apartidários não tornava apartidário, muito menos apolítico o ambiente em que as manifestações estava ocorrendo. Ora, a praça era São Paulo, esquina do PSDB com o PT, o ponto de maior fricção política nacional nessa quadra histórica.
Naquela primeira hora, prefeito falou aos que nele votaram, como se tais eleitores fossem se lembrar da promessa de campanha, mantida, e que agora usava como razão para não atender ao pedido de revogação do aumento de tarifa. Ninguém deu ouvido a ele. Já o governador politizou noutra direção: diferentemente do prefeito, demonstrou ser conhecedor do seu eleitorado, definiu os manifestantes como baderneiros e vagabundos, e soltou a polícia sobre eles, para regozijo dos seus seguidores.
Mas a jogada política do Governador não foi longe, porque longe demais foi sua polícia. No protesto seguinte, reprimiu com muita violência tanto os manifestantes, como a imprensa e quem mais entrasse na mira de suas balas de borracha.
As redes sociais, a esta altura, já estavam espumando de ódio e indignação, como de costume. E como de hábito, tanto à esquerda, como à direita. Mas havia um fato novo. A diferença é que alguém havia aberto as portas das redes sociais. As portas para a rua. A hidrofobia típica das redes sociais (brasileiras?) estava liberta do jugo dos teclados. Os dedos estavam livres para, se quisessem, apontar outros horizontes, que não o do QWERTY.
Vozes da classe média – essa que por excelência se expressa raivosamente nas redes sociais, à esquerda e à direita – levantaram o tom, insurgindo-se contra a violência policial. Lembraram a repressão histórica da ditadura. Agora, eram pais lembrando-se de si mesmos nas ruas sob o cassetete dos últimos estertores da ditadura. Ver “gente como a gente apanhar” da polícia sem qualquer “critério” era inadmissível para aquelas pessoas. E lembraram-se das ruas.
As manifestações seguintes foram crescendo, nutridas por duas outras mudanças no que originalmente era o movimento: (i) sua pauta diluiu-se em dezenas de outras – primeiro, em autodefesa, para justificar que “a luta não era por 20 centavos”; segundo, por apropriação de seu sentido e extensão por aquelas outras vozes das redes sociais, nada articuladas, que apenas têm por rotina brigar virtualmente; (ii) como não há líderes no MPL, então qualquer um é seu porta-voz, e assim, aquele movimento surgido da crise das representatividades, passava a correr o risco de não mais ser o representante de seu próprio movimento.
Foi então que se chegou a 17 de junho de 2013.
250 mil pessoas Brasil adentro, em manifestações de todo tamanho e com qualquer pauta. Uma catarse em escala nacional contra todo tipo de grito preso na garganta. Gritos, no entanto, nada presos nas redes sociais, mas que agora se repetiam nas ruas. Uma grande feijoada. A tensão virtual trocada em miúdos, num banquete pelas ruas.
17 de junho marcou dessa forma o transbordamento dos discursos de insatisfação, antes contidos nas redes sociais, para dentro das ruas, praças, avenidas, pontes, estaiadas ou não. Palácios.
17 de junho também viu o MPL tentar um retorno tático à sua pauta original. Agora, vozes (anônimas) passaram a insistir que a pauta era a revogação do aumento e que é sobre isso o movimento.
Mas São Paulo não era mais dona do movimento. O movimento estava pelo País todo, sem cara, nem agenda definidas. Nele já cabia e cabe qualquer coisa. Um portmanteau reivindicatório, sem rumo, nem objetivo. Catarse social. O líquido pastoso dos confrontos comportamentais no Facebook e no Twitter escorreu pelas ruas. E ninguém nos palácios, nem nas redações, a entender o que se passava. A mídia internacional misturando tarifa de ônibus com Copa do Mundo – uma interpretação da mesma forma válida como qualquer outra, no que reflete a diluição do discurso e do movimento.
Na sua incepção, o que havia era apenas isto: um experimento de organização social em rede, que saiu do controle de quem o concebeu e acabou por gerar uma catarse social gigantesca.
Porém, essa catarse é apenas um dos efeitos colaterais da experiência do MPL.
Com base no que se aprendeu esses dias com o MPL, “todos” que têm um perfil em qualquer rede social estão em condição de gerar um protesto em praça pública, sob qualquer pretexto, basta saber ser sedutor ou, talvez mais ainda: ser aberto a um discurso de insatisfação detectado na rede. Não há nada de mais fácil do que fazer isso. Basta olhar os “trending topics”. Ou gerar um “hashtag” com apelo adequado. Ou criar um “evento” e, nele, abrir um menu para que os convidados escolham contra o que querem protestar.
No ambiente em rede, o “protesto” passou assim a ser um “evento”; o cidadão, um “perfil”; o “manifestante”, um “convidado” e “a pauta de reivindicações”, um “menu” que pode ser preenchido pelos que “acessem a página” (em lugar da dinâmica de “participar de assembleia”). O “grupo” toma o lugar do “partido”, do “sindicato”, da “ONG”) . Um role-playing game – agora em cartaz nas ruas de sua cidade.
Foi precisamente assim que se organizou a manifestação feita em Brasília, no mesmo 17 de junho. Sem nem mais um grão de sofisticação. As TVs que cobriam o “evento”, ou “protesto”, na Esplanada dos Ministérios, expunham com horror que os manifestantes haviam “invadido o Congresso Nacional”. Quem quer que não tivesse conhecimento de como o “evento” fora organizado poderia ficar sinceramente receoso de um golpe de Estado. Mas para saber que não era nada disso bastava digitar “Marcha do Vinagre” na área de pesquisa do Facebook e entrar no “evento” de mesmo nome.
Ao entrar no “evento Marcha do Vinagre” (referência aos protestos em São Paulo, em que manifestantes usaram vinagre para mitigar os efeitos do gás lacrimogêneo, mas chegaram a ter o produto recolhido pela polícia) o leitor logo perceberá que essa marcha nasceu e morreu sem pauta, sem agenda, sem objetivo, senão a manifestação pela manifestação: o que houve em Brasília foi a expressão máxima do processo em curso de fetichização do protesto. O protesto tornado coisa, a partir de matéria virtual. Uma condensação de fetiches virtuais.
O fato de estar ocorrendo a fetichização do protesto não o torna menos preocupante. Um protesto pelo protesto ainda é um protesto. E uma multidão mobilizada por nada, sem objetivo e sem causa – ou com todas as causas, o que dá no mesmo – é muito preocupante, por ser incontível, incontrolável e com ela é impossível negociar. Um protesto como a Marcha do Vinagre é intrinsecamente um impasse entre o ser e o não ser protesto. Sua falta de liderança se desdobra facilmente em acefalia. E, sem cérebro que o pense, a porta se abre à barbárie. Nada de mais grave aconteceu no Congresso Nacional, porque as “forças de segurança” souberam deixar o grupo exaurir seu desejo de expressão, perfazer sua catarse, e… ir embora.
Enquanto isso, no 17 de junho de São Paulo, a multidão, em mitoses sucessivas, dividiu-se em quatro grandes passeatas. Uma delas ficou sem ter o que fazer, senão posar para belas fotos na Ponte Estaiada. A que se dirigiu à Paulista dispersou-se pacificamente, tal como a que ficou pela Faria Lima. Porém, os que se desgarraram para o Palácio dos Bandeirantes chegaram lá sem cérebro, sem pernas, com fome e sem saber o que fazer.
Os de Brasília foram indo embora debaixo dos pratos do Congresso Nacional, como quem acorda de ressaca sob a mesa e nota com dificuldade que a festa acabou. Os do Palácio dos Bandeirantes, parece que ficaram esperando que alguma coisa importante acontecesse, mas não.
Nenhuma catarse dura para sempre.
Anda bem o núcleo do MPL, no que quer resolver logo o problema da tarifa de ônibus. Para encerrar esse capítulo, antes da diluição total do seu movimento. Mas o dano da apropriação do movimento é atual. Grupos sem compromisso com a agenda do MPL vêm praticando atos de vandalismo contra prédios públicos, palácios. Não há qualquer garantia de que, atingido o objetivo de revogação do aumento de tarifa, outras bandeiras mantenham grupos nas ruas, do tamanho que fortuna e virtú lhes proporcionar.
Fica portanto o lerta: a partir de junho de 2013, o Brasil está sujeito a mobilizações em massa por qualquer motivo ou sem qualquer motivo. Bastará um dedo revoltado que, tendo usado a fórmula mágica da condensação de revoltas virtuais, resolva clicar em “post”. Como lidar com essa capacidade nova de mobilização? O que pode advir disso? Que dinâmica isso gerará nos processos eleitorais de 2014? Que interlocução será possível e conveniente com essas dinâmicas?
E principalmente: como tornar isso instrumento de cultura e não de barbárie?
Os dedos estão lançados.
Caio Leonardo
18/19 de junho de 2013